Vincenzo Bongiovanni*
PUC - São Paulo

Vou relatar, neste artigo, dois episódios, tentando retratar sustos que nós, professores de Matemática, estamos sujeitos a levar.

 

     1° EPISÓDIO: Um símbolo com dois significados?

Um colega meu, professor de Matemática, tinha o hábito de desafiar seus alunos do 2 grau com a seguinte questão:

Resolver:                 

e, após infrutíferas tentativas por parte dos alunos, ele apresentava sua solução:

Essa questão era apresentada aos alunos, ano após ano.

Um dia, o filho de um amigo pediu sua ajuda para resolver um problema. Enorme foi sua surpresa ao ver que o problema era:

- Esse eu conheço, disse o professor. E, rapidamente, apresentou a solução:

Ficou perplexo - como era possível o símbolo       representar o número 2 e também representar o número 4?      Teria durante anos a fio ensinado algo errado?

Qual é a explicação para o aparente paradoxo descoberto pelo professor?

Para tentar explicá-lo vamos, inicialmente, dar um sentido mais

rigoroso ao símbolo     .

Coloque a1(x) = x  e  an+1(x) = xan(x) para n 1. Com isso obtemos uma sequência de funções { an(x) } que, para cada x IR, pode ou não ser convergente.

Nos dois casos particulares que tratou, o professor partiu de uma hipótese: lim an(x) = 2 no primeiro caso e lim an(x) = 4 no segundo, e usou a relação an+1(x) = xan(x)  para concluir que lim an+1(x) = xlim an(x).

0 raciocínio está perfeito desde que as hipóteses de partida sejam verdadeiras, isto é, desde que existam números reais x0 e x1 tais que lim an(x0) = 2 e lim an(x1) = 4. Quando esses números não existem, a técnica utilizada pelo professor irá certamente conduzir a resultados absurdos.

[Um exemplo simples serve para ilustrar o que acontece quando partimos de uma hipótese falsa. Observe a sequência:

a1= x        e        an = 3 an-1 2,         para    n > 1 .

O lim an(x)   existe apenas para   x = 1,   caso em que   an, = 1   para todo n.

Se escrevermos, por exemplo, lim an(x) = 5, e utilizarmos o raciocínio do professor, teremos:

5 = 3 x 5 2 = 15 2= 13 (?) ]

No problema tratado pelo professor, é possível mostrar que  lim an(x)  existe para  0 < x e1/e e, além disso. que quando existe,   lim an(x) < e.  Assim, não existe nenhum   x   real, tal que

= 4 .   Ao assumir que tal   x   existia, o professor foi levado a uma conclusão paradoxal.

 

     2 EPISÓDIO: Traído por Gelfond

Em janeiro de 1983, um grupo de professores de Matemática reuniu-se para resolver a prova de Matemática do vestibular da FUVEST. O gabarito deveria ser distribuído no dia seguinte aos alunos.

Uma das questões deixou os professores em apuros. O seu enunciado era:

a)    Usando propriedades das potências, calcule x.

b)      Prove que existem dois números irracionais      e      tais  que     é racional.

O item (a) não deixava a menor dúvida:

2.

Quanto ao item (b), tudo indicava que a existência e a obtenção de tais números encontrava-se no item (a). Se fosse irracional, teríamos chegado à solução, já que, nesse caso,   e . Mas como saber se era irracional? Infelizmente, nesse momento, lembramos um resultado conhecido como Teorema de Gelfond:

Se      é algébrico, diferente de   0   e   1,   e      é algébrico e não racional, então     é transcendente.

Como é algébrico, pois é raiz de uma equação polinomial de coeficientes inteiros  (x2 2 = 0)   e não é racional, então, pelo

Teorema de Gelfond, é transcendente e, portanto, irracional. (V. O que é um número transcendente na, RPM 1, p. 14.) Bem, agora sabíamos que era irracional, o que comprovava a veracidade da proposição do item (b). Tínhamos, contudo, a certeza de que essa não era a solução imaginada pelos examinadores. Haveria, certamente, uma saida, mais simples. Procuramos, dessa forma, outros caminhos, sem sucesso.   Não encontrávamos uma demonstração elementar da irracionalidade de   .

Um colega, que se encontrava em outra cidade e, portanto, não contaminado pelo Teorema de Gelfond, sabendo que estávamos sem inspiração, telefonou-nos apresentando uma solução. E que bela solução!

      é irracional ou racional.

     Se for irracional, o item (b) está provado com       e   

• Mas, se for racional, nesse caso, então, também o item (b) está provado com     e

Que simplicidade! Que saída elegante!

Nosso grande bloqueio foi não reíletir sobre a possibilidade de  ser racional, uma vez que Gelfond não o permitia.   Enfim, fomos seduzidos e traídos por Gelfond.

 

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Adaptação do Comité Editorial da RPM, aprovada pelo autor

 

Vincenzo Bongiovanni é licenciado em Matemática pelo Instituto de Matemática e Estatística da USP e mestre em Matemática pela PUC-SP. Leciona no Colégio Universitas de Santos, na UNISANTOS, na PUC-SP, e é autor de vários livros didáticos.

 

NR.: Esta solução é exemplo de uma demonstração que prova a existência de um objeto matemático sem que saibamos qual é esse objeto. Na verdade provamos a existência do par , sem decidir se o par procurado é e ou  e .