Geraldo Ávila
IMECC-UNICAMP,
Campinas, SP

     Introdução

Certa vez, enquanto eu fazia uma palestra sobre logaritmos para professores do 2 grau, fui interpelado com esta pergunta:

- Professor, como é que se constrói uma tábua de logaritmos?

Eu dei uma rápida explicação, e depois, conversando com meus ouvintes, fiquei sabendo que esse é um dos tipos de perguntas que os alunos fazem e para a qual o professor nem sempre está preparado para responder. Daí minha decisão de escrever este artigo, descrevendo alguns dos recursos utilizados na construção de tábuas.

Até por volta de 1960, as tábuas de logaritmos eram muito usadas nos cálculos manuais. E mesmo hoje em dia, embora esses cálculos sejam feitos com auxílio de calculadoras, quando se ensinam os logaritmos no segundo grau ainda é costume explicar como se faziam esses cálculos usando as referidas tábuas. E para isso é preciso ter à mão uma tábua, ou, pelo menos, um extrato de tal tábua. Sim, mas como se constróem essas tábuas?    É importante saber o que está por trás desse trabalho, até mesmo para ter uma ideia de como funcionam as calculadoras que utilizamos.

 

     Um Pouco de História

O aparecimento dos logaritmos ocorreu no começo do século XVII, quando já era premente a necessidade de facilitar os laboriosos cálculos trigonométricos da Astronomia e da Navegação. A idéia básica era substituir operações mais complicadas, como multiplicação e divisão, por operações mais simples, como adição e subtração.

Os principais inventores dos logaritmos foram o suíço JOOST BÚRGI (1552-1632) e o escocês JOHN NAPIER (ou NEPER) (1550-1617), cujos trabalhos foram produzidos independentemente um do outro. As primeiras tábuas de logaritmos de Neper apareceram em 1614, em Edimburgo, ao passo que as de Biirgi só vieram à luz em 1620, em Praga, onde ele trabalhava como assistente de Kepler. Portanto, quando Biirgi publicou suas tábuas, as de Neper já eram conhecidas em toda a Europa. No entanto, é provável que Biirgi tivesse concebido os logaritmos antes mesmo que Neper. Os logaritmos foram reconhecidos como uma invenção realmente extraordinária logo após a publicação de Neper em 1614. Convém mencionar que esses pri­meiros logaritmos neperianos tinham sérios inconvenientes e foram logo modificados por ele mesmo e por HENRY BRIGGS (1561-1631), um dos primeiros e mais ardentes entusiastas do trabalho de Neper. O resultado foi o aparecimento dos logaritmos de Briggs, ou logaritmos decimais. Briggs publicou sua primeira tábua em 1617; depois, em versão bem mais ampliada, em 1624.

A invenção dos logaritmos teve um impacto decisivo no desenvolvimento científico e tecnológico. O astrônomo Kepler (1571-1630) saudou essa invenção como uma bênção e um alívio para o astrônomo, que iria aumentar consideravelmente sua capacidade de computação. E empregou largamente esse novo instrumento nos cálculos que o levaram a descobrir sua 3 lei planetária.

Os logaritmos decimais de Briggs sugeriam a definição que nos é familiar hoje: o logaritmo de um número N numa. base a é o expoente r a que se deve elevar a base para se obter N, isto é, N = ar. Mas essa concepção não aparece nos trabalhos de Neper e Briggs, mesmo porque no tempo em que eles viveram ainda não se usavam expoentes fracionários e irracionais.  0 esquema original de Neper é complicado e não será explicado aqui.

     Como Briggs e Vlacq Construíram suas Tábuas

Antes de tudo lembremos que estamos falando apenas dos logaritmos decimais, isto é, logaritmos na base 10. E lembremos também que qualquer número positivo pode sempre ser escrito na forma de uma potência de 10 vezes um número a compreendido entre 1 e 10,  isto é,   1 < 10.   Por exemplo,

23 547 = 2,3547 x 104,        0,0000259 = 2,59 x 10-5.

Em vista disso, basta conhecer os logaritmos dos números entre 1 e 10 para se determinar o logaritmo de qualquer número. Esses logaritmos são as chamadas mantissas.

Vejamos como Briggs calculou sua tábua de logaritmos. Ele começou extraindo a raiz quadrada de 10, seguida das extrações sucessivas das raízes quadradas dos resultados obtidos em cada extração. Isso equivale a elevar 10 aos expoentes 1/2, 1/4, 1/8, etc. Evidentemente, 1/2, 1/4, 1/8, etc, são os logaritmos das raízes quadradas obtidas. Exemplificando,

 

Briggs usou esse procedimento de ir extraindo a raiz quadrada sucessivamente por 54 vezes; vale dizer, ele foi elevando o número 10 aos expoentes 1/2, 1/22, 1/23,... até chegar a 1/254. Como consequência disso, ele obteve os logaritmos de vários números, como ilustra a tabela na página seguinte:

Tabela de logaritmos decimais

x

log x

101/ 2 =

3,16228

0,50000

101/4 =

1,77828

0,25000

101/8 =

1,33521

0,12500

101/16 =

1,15478

0,06250

10l/32 =

1,07461

0,03125

10l/64 =

1,03663

0,01563

101/128 =

1,01815

0,00781

101/256 =

1,00904

0,00391

Essa nossa tabela é muito modesta comparada com a de Briggs. Ele foi até , extraindo cada raiz quadrada com uma aproximação de 30 casas decimais! Por exemplo, a última linha de sua tabela contém o número

= 1 + 10-15 x 0,127819149320032,

cujo logaritmo é

Briggs foi aumentando sua tabela, utilizando os resultados já obtidos e a propriedade fundamental log ab) = log a + log b. Por exemplo,

log(101/2 x 101/4) = log 101/2 + log 101/4,

donde

log(3,16228 x 1,77828) = 0,5 + 0,25

e, finalmente,

log 5,62342 = 0,75.

 

Observe que o conhecimento dos logaritmos de dois números  A B permite calcular o logaritmo de      facilmente. De fato,

No fundo, isso equivale ao procedimento já descrito para aumentar a tabela anterior, multiplicando dois números (que já sejam raízes quadradas de números anteriores) e somando seus logaritmos. Sendo A e B números diferentes, é claro que C estará compreendido entre A e B, de forma que repetidas aplicações da equação anterior permitem obter mais e mais logaritmos, de números cada vez mais próximos, pelo simples procedimento de extrair raízes quadradas e somar logaritmos. De fato, supondo A < B, obtemos o logaritmo de C, que estará entre A e B; depois de e , onde   A < D < C  C < D < B;   e assim por diante.

Briggs construiu uma extensa tábua de logaritmos decimais e em 1624 publicou sua Arithmetica Logarithmica, uma tábua dos logaritmos dos primeiros 20000 números inteiros e dos números de 90 000 a 100 000, cada logaritmo calculado com 14 casas decimais. O espaço deixado por Briggs entre 20 000 e 90 000 foi preenchido por ADRIAN VLACQ, um matemático holandês que publicou, em 1628, uma tábua dos logaritmos dos primeiros 100 000 números inteiros, e que serviu de modelo para todas as tábuas que se publicaram desde então até meados deste século.

 

     O Uso da Séries Infinitas

Por volta de 1665, ISAAC NEWTON (1642-1727) descobriu várias séries infinitas representando funções conhecidas. Por exemplo, pela fórmula da soma de uma série geométrica,

ou, ainda,

Supondo |x| < 1, é claro que xn+1 torna-se cada vez mais próximo de zero quanto maior for n. Dizemos que xn+1 tende a zero com n tendendo a infinito. E, fazendo n tender a infinito nessa última identidade, obtemos

onde o membro da direita é uma soma infinita.

A partir dessa série, Newton obteve a seguinte série para a função ln(l + x) (onde ln significa logaritmo natural ou logaritmo na base e):

Trocando  x   por   x   nessa série, obtemos também

finalmente, subtraindo uma série da outra, obtemos uma série para a função

qual seja,

Em princípio, essa série permite calcular o logaritmo (natural) de qualquer número. De fato, à medida. que x varia no intervalo 1 < x < 1,   y = (1 + x) / (l x) varia de zero a infinito, como se pode ver pelo exame do gráfico dessa última função. (Aliás, é um bom exercício fazer esse gráfico pelo método que explicamos no livro citado no rodapé inicial, Introdução às Funções e à Derivada, pp. 34 e seguintes, e pp. 45 e 47.) Dizemos "em princípio" porque a série só é útil para fazer cálculos quando x está próximo de zero, caso em que basta somar poucos termos dela para obtermos uma boa aproximação do logaritmo procurado. A medida que x vai ficando mais e mais próximo de 1 ou 1, mais e mais termos vão sendo necessários para se obter boa aproximação.

Como exemplo, vejamos como Euler (em seu livro Introduction to Analysis of the Infinite, Springer, Book I, p. 98) calculou os logaritmos dos inteiros de 2 a 10. Ele começou atribuindo a x os valores 1/5, 1/7, 1/9, com o que y assume os valores 3/2, 4/3 e   5/4,   respectivamente.   Uma vez calculados os logaritmos desses números (pela última série acima), os logaritmos dos inteiros de 2 a 10 são calculados assim:

Falta calcular o logaritmo de 7. Para isso Euler teve a genial ideia de substituir x = 1/99 na série, donde y = 50/49; a série permite obter o logaritmo deste último número, e o logaritmo de 7 é dado por

Observe que esses logaritmos são, como dissemos, os logaritmos naturais, ou logaritmos na base e. Para passarmos aos logaritmos decimais, usamos a fórmula

 

que nos diz que os logaritmos decimais são os mesmos naturais divididos pelo fator ln 10. Aliás, essa fórmula é caso particular da fórmula mais geral de mudança de base:

a qual também nos diz que os logaritmos dos números numa determinada base a são iguais aos logaritmos dos mesmos números numa outra base qualquer  b  divididos pelo fator logb a.

 

 

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*Parte deste artigo aparece no final do capítulo 4 do livro do mesmo autor, Introdução às Funções e à Derivada, publicado pela Atual Editora. O artigo foi submetido à RPM antes do lançamento do livro e sofreu atraso em sua publicação. Aparece agora numa versão mais completa.