Currículo de  Matemática
para o
Século XXI na
R
epública da  China*

Myrtle W. Hsiang e
Wu-Yi Hsiang
Universidade da Califórnia, Berkeley

Um projeto de âmbito nacional na República Popular da China foi iniciado em 1978, com a finalidade de estabelecer um currículo adequado para o ensino médio de Matemática e de promover uma ampla reforma na educação matemática chinesa. Segue-se um texto dos matemáticos Hsiang e Hsiang apresentando alguns aspectos do projeto**. O objetivo da RPM ao divulgar esse trabalho é colocar ao alcance dos leitores um material que a revista julga relevante para as discussões que no Brasil se fazem a respeito de um assunto tão importante para o professor de Matemática, não implicando, naturalmente, aval da RPM às idéias expressas no documento.

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*   Tradução e apresentação de José PauJo Quinhões Carneiro. ** Veja também RPM 23, p. 23-34.

 

       Os Objetivos da Educação Matemática Básica

A educação matemática no ensino médio será uma componente importante da educação compulsória geral na China do século XXI. 0 objetivo primordial desse currículo é, portanto, atender bem às necessidades da população em geral. Para fazer face ao elevado nível tecnológico e à avalanche de informações que se espera para o próximo século, será necessário, mesmo para os cidadãos comuns, um nível mais alto de competência em pensamento analítico. A educação matemática básica tem sido sempre o melhor campo de treinamento para o desenvolvimento do pensamento analítico, e acreditamos que esse é, exatamente, o objetivo principal da educação matemática no ensino médio. O segundo objetivo importante é, evidentemente, proporcio­nar uma sólida fudamentação da Matemática básica, a qual é, quase universalmente, exigida para todos os tipos de aprendizagem superior. Na educação matemática básica, o conhecimento matemático é, sem dúvida, importante, mas o desenvolvimento nos estudantes das técnicas de reconhecimento de problemas e de resolução de problemas é igualmente importante, e tem sido de certo modo negligenciado no currículo convencional.

 

     Algumas  Idéias  Básicas

A seguir são apresentadas as idéias básicas que orientaram os projetos globais e fixaram o teor básico do currículo recentemente elaborado.

(1)  Para desenvolver nos estudantes as técnicas de reconhecimento e de resolução de problemas, o currículo deve colocar uma ênfase maior na participação do estudante. Isto é alcançado através de um processo de aprendizagem construtiva, envolvendo um número maior de  discussões detalhadas sobre motivação, exploração e as idéias básicas, bem como a incorporação de muitos exercícios intelectualmente divertidos e desafiadores.    0 cultivo de habilidades analíticas deve ter precedência sobre a mera aquisição de conhecimentos.

(2)   O argumento mais convincente para aprender Matemática básica é, evidentemente, que a Matemática será sempre útil.  Indubitavelmente, as gerações futuras irão calcular com o mesmo sistema de números e ainda viverão no mesmo espaço.   Portanto, os números, conjuntos, vetores e funções constituirão para sempre os objetos básicos de estudo em Matemática; as operações básicas e as leis operatórias fundamentais que governam os quatro tipos de objetos matemáticos descritos acima serão sempre o conjunto mais poderoso de ferramentas universais. Portanto, um tema central desse currículo é demonstrar amplamente o poder e a utilidade dessas ferramentas.

3)   O currículo deve ser relevante e deve estar intimamente correlacionado com as experiências anteriores dos estudantes com a realidade.   A abstração e o formalismo, embora indispensáveis, devem ser mantidos num nível mitigado, porém ainda adequado, a fim de evitar a armadilha de criar nos estudantes um sentimento místico em relação à Matemática.

(4) O projeto global do currículo deve seguir de perto os caminhos evolutivos do desenvolvimento natural da Matemática. Além disso, o currículo deve fazer um esforço para proporcionar uma transição suave para cada ruptura histórica ou desvio importante do curso, como, por exemplo, as transições da Aritmética para a Álgebra, da Geometria Experimental para a Geometria Dedutiva, da Geometria Dedutiva para a Geometria Analítica e da Matemática de quantidades fixas para a Matemática de quantidades variáveis.   Acreditamos que esses quatro desenvolvimentos significativos na evolução da Matemática são exatamente os quatro marcos mais importantes ao longo da jornada dos estudantes através de sua educação matemática básica.

 

     Estruturas Globais e Alguns Itens Especiais

No presente sistema educacional chinês, o ensino médio é dividido em dois períodos de três anos: o período júnior, correspondente aos graus de 7 a 9, e o período sênior, correspondente aos graus de 10 a 12.   A estrutura do novo currículo é a seguinte:

Currículo para os anos do período júnior

1 ano

2 ano

3 ano

Álgebra Elementar
Geometria Elementar

Análise
Elementar


Currículo para os anos do período sénior

1 ano

2 ano

3 ano

Álgebra Intermediária
Geometria Intermediária

Análise
Básica

Seguem-se breves resumos dos itens do currículo, com alguns comentários sobre tópicos especiais.

 

     Álgebra  Elementar

Para facilitar uma transição suave da Aritmética para a Álgebra, o currículo começa com uma revisão sobre números inteiros e os números racionais; as relações fundamentais entre as operações básicas são analisadas cuidadosamente e em seguida utilizadas para fornecer explanações persuasivas sobre a validade geral das leis que governam as operações algébricas. O ponto de vista é incutir nos estudantes a ideia de que a finalidade da Álgebra é procurar métodos eficazes de analisar e resolver todos os tipos de problemas quantitativos capazes de serem expressos em termos das operações algébricas (ou seja, os chamados problemas algébricos), e as aplicações das leis das operações algébricas são exatamente o pão com manteiga da Álgebra.

Nesse seu primeiro encontro com os métodos algébricos, os estudantes são apresentados à ideia simples, porém fundamental, da aplicabilidade universal dessas leis, seja aos números usuais ou às quantidades incógnitas. Um fato notável, e que foi exatamente a inspiração que conduziu à criação da Álgebra, é que a aplicação sis­temática das leis das operações muitas vezes possibilita transformar as quantidades incógnitas de um certo problema algébrico em valores específicos (em termos modernos, achar as soluções de sua correspondente equação algébrica). Essa ideia é então usada para fornecer soluções unificadas e diretas para uma série de problemas enunciados verbalmente, no âmbito das equações lineares com uma ou várias incógnitas e das equações quadráticas com uma incógnita. A experiência indica que esse primeiro encontro não apenas impressiona os estudantes sobre o poder dos cálculos algébricos, mas também acende seu entusiasmo para o aprendizado da Álgebra. Eles constatam que os cálculos simbólicos não passam de aplicações das leis das operações algébricas para resolver problemas algébricos. Em última análise, o uso de símbolos para denotar uma incógnita ou a introdução de indeterminadas tem o preciso objetivo de facilitar a aplicação das leis das operações. Após o sucesso dessa experiência, a Álgebra Polinomial torna-se muito natural para os estudante á aprenderem e usarem. O teorema do resto, o teorema da interpolação para polinómios, e o método dos coeficientes a determinar não devem agora representar dificuldades para eles.

 

     Geometria Elementar

Esse currículo enfatiza a base empírica da Geometria e inicia com um capítulo bastante elaborado sobre Geometria Experimental: a experiência física e a percepção visual do "espaço onde vivemos" são analisados cuidadosamente, e são explicados em detalhe os conteúdos intuitivos dos conceitos e propriedades básicas da Geometria.

Um capítulo introdutório sobre conjuntos e lógica é inserido para facilitar a transição da Geometria Experimental para a Geometria Dedutiva. Esse capítulo fornece uma introdução simples sobre o método de descrever um conjunto; a cor­respondência natural entre conjuntos e suas propriedades características; operações básicas e relações entre conjuntos e seus correspondentes significados lógicos em termos de propriedades características que os descrevem.

A parte do currículo dedicada à Geometria Dedutiva é essencialmente uma versão modernizada da Geometria de Euclides. Os temas principais são: (i) o uso do método dedutivo para estudar as propriedades dos objetos básicos da Geometria, tais como triângulos, paralelogramos e círculos; esse estudo conduz naturalmente a uma coleção de teoremas básicos, (ii) as aplicações dos teoremas básicos para estabelecer outros teoremas interessantes e resolver uma série de problemas típicos, e (iii) exercícios interessantes e desafiantes, para que os estudantes pratiquem sua habilidade básica em análise lógica. A organização dessa parte ressalta a importância das simetrias, homotetias, fórmulas de área, teorema de Pitágoras e propriedades dos círculos. O importante item da comensurabilidade é mencionado, mas posposto para a Geometria Intermediária.
 

 

     Análise Elementar

Consiste de duas partes intimamente relacionadas: (i) a Geometria Elementar em coordenadas cartesianas no plano, e (ii) funções polinomiais, funções trigonométricas e as leis do seno e do cosseno. A primeira parte é tratada como uma aplicação sistemática dos teoremas básicos sobre Geometria quantitativa. As discussões se limitam às fórmulas de distâncias e áreas, proporcionalidade, equações de retas e círculos. As funções polinomiais se limitam às de graus baixos; as propriedades das funções lineares e quadráticas constituem o tópico principal. As funções seno e cosseno são definidas como o par natural de funções parametrizadoras do círculo unitário. Todas as propriedades e fórmulas básicas do seno e do cosseno são deduzidas a partir das propriedades geométricas do círculo, principalmente suas simetrias.


 

     Álgebra Intermediária

Começa com um capítulo de fundamentação sobre Álgebra de Boole (tratada como a álgebra baseada nas leis das operações com conjuntos), indução matemática e análise estrutural dos sistemas básicos de números (agora são dadas demonstrações por indução das explicações fornecidas na Álgebra Elementar sobre a validade universal das leis operatórias). O método de indução matemática exerce um papel importante nesse currículo, não somente do ponto de vista técnico, mas também sob o aspecto filosófico. Muitos tópicos importantes, como a teoria dos determi­nantes, são estabelecidos por uma abordagem inteiramente indutiva, consistindo de descoberta indutiva, definição indutiva e demonstração indutiva.

Essa parte cobre a teoria básica de polinômios, abrangendo interpolação, fórmulas de soma*, teorema do binômio, fórmula de Taylor para expansão local de polinômios (como uma simples generalização do teorema do binômio), propriedades locais tais como máximos e mínimos; teoria dos sistemas lineares e dos determinantes; combinatória e probabilidade elementar.

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No original: summation formulas.

 

     Geometria Intermediária

O primeiro capítulo trata dos fundamentos da Geometria e do sistema dos números reais. Começa com um relato histórico das lutas heróicas dos geômetras gregos em relação aos fundamentos da Geometria, centradas sobre o tema da comensurabilidade. O axioma equivocado da comensurabilidade universal, a descoberta de intervalos não comensuráveis e a invenção do método de aproximação para superar a dificuldade da incomensurabilidade, não apenas são desenvolvimentos épicos, mas também sua discussão sistemática é, como acreditamos, o caminho mais natural para introduzir o sistema dos números reais, bem como a frutífera metodologia das aproximações e dos limites.

0 segundo capítulo apresenta um tratamento abrangente e cuidadoso da Geometria Sólida. Vivemos em um espaço tridimensional, mas nossa visão é essencialmente bidimensional, porque assim o é a retina. É claro que todos nós temos uma mente tridimensional, ajudada por uma percepção bidimensional, limitada, da visão binocular. De qualquer modo, a tarefa do currículo de Geometria Sólida é educar a mente tridimensional a dominar as técnicas básicas da Geometria Tridimensional. A discussão desse capítulo destaca a importância do paralelismo, da perpendicularidade e da Geometria das reflexões; e achamos vantajoso usar as operações com conjuntos e as leis que regem essas operações na discussão da Geometria Sólida.

A parte principal desse currículo trata da Álgebra Vetorial, da Geometria Vetorial e da Geometria Analítica. O conceito de vetores de deslocamento, o significado geométrico das operações com vetores e das leis que regulam essas operações são analisados minuciosamente. É inculcado nos estudantes o ponto de vista de que a Álgebra Vetorial é o resultado final de uma algebrização sistemática do espaço e constitui já um modelo algébrico completo da estrutura do espaço. Deve ficar claro para os estudantes que as operações vetoriais são exatamente a algebrização das estruturas básicas do espaço, e que as leis que regem essas operações são exatamente a algebrização das propriedades básicas do espaço. Portanto, a Álgebra Vetorial fornece um conjunto completo de sistemas eficazes e computáveis para o estudo da Geometria Analítica. Evidentemente, as operações vetoriais e a Álgebra Vetorial são usadas extensivamente nos capítulos posteriores sobre Geometria Vetorial e Geometria Analítica. Um capítulo sobre os números complexos e o sistema de coordenadas do plano é também incluído aqui, usando operações vetoriais.

 

     Análise Básica

Esse currículo é basicamente uma introdução concisa ao Cálculo. Começa com um capítulo de fundamentos sobre sequências, aproximações e limites, a continuidade da reta e os números reais como um sistema completo. Sequências e limites são apresentados como uma moldura conveniente e naturalmente adaptada à metodologia de aproximação de Eudoxo; a afirmativa fundamental da existência do limite de uma sequência é encarada como a descrição analítica da continuidade da linha reta, a qual, por sua vez, serve como base para demonstrar outros teoremas básicos de existência e para entender outros tipos de continuidade. Ao longo desse currículo, a metodologia de aproximação é enfatizada, não apenas como uma técnica corri­queira, mas também como a filosofia orientadora. Todos os conceitos básicos, como a continuidade, as derivadas e as integrais definidas, são motivados por uma análise bastante detalhada dos exemplos típicos. As funções elementares, principalmente a função exponencial e a função logaritmo, são tratadas como um tópico importante, com abundantes exercícios.

Observação: Os livros-textos para os currículos acima descritos são publicados pela Editora para Educação do Povo, Pequim, República Popular da China.