Geraldo Ávila
IMECC-UNICAMP,
 Campinas, SP

     O Jogo de  Xadrez

Segundo uma lenda antiga, o jogo de xadrez foi inventado na índia, para agradar a um soberano, como passatempo que o ajudasse a esquecer os aborrecimentos que tivera com uma desastrada batalha. Encantado com o invento, o soberano, rei Shirham, quis recompensar seu súdito Sissa Ben Dahir, o inventor do xadrez. Shirham disse a Sissa que lhe fizesse um pedido, que ele, rei Shirham, o atenderia prontamente. Sissa disse, simplesmente:

— Bondoso rei, dê-me então um grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro, dois pela segunda casa, quatro   (= 22)   pela terceira, oito  (= 23)  pela quarta, e assim por diante, até  263   grãos de trigo pela última casa do tabuleiro, isto é, a 64 casa.

O rei achou esse pedido demasiado modesto e, sem dissimular seu desgosto, disse a Sissa:

— Meu amigo, tu me pedes tão pouco, apenas um punhado de grãos de trigo. Eu desejava cumular-te de muitas riquezas - palácios, servos e tesouros de ouro e prata.

Como Sissa insistisse em seu pedido original, o rei ordenou a seus auxiliares e criados que tratassem de satisfazê-lo. 0 administrador do palácio real mandou que um dos servos buscasse um balde de trigo e fizesse logo a contagem. Um balde com cerca de 5 kg de trigo contém aproximadamente 115 000 grãos (como o leitor pode verificar, fazendo, ele mesmo, a contagem...); foi o suficiente para chegar à 16.ª casa do tabuleiro, mas não além, pois (veja o quadro logo abaixo)

1 + 2 + 22 + 23 + . . . + 215 = 216 1 = 65 535,

enquanto, para chegar à 17 casa seriam necessários

1 + 2 + 22 + 23 + . . . + 216 = 217 1 = 131 071

grãos de trigo. (Um fato interessante a observar: o número de grãos de trigo a colocar numa casa é igual a todos os grãos já colocados nas casas precedentes mais 1. De fato, pelo penúltimo cálculo vê-se que todos os grãos colocados até a 16.ª casa mais 1 é 216, que é o número de grãos correspondentes à 17.ª casa.)

Lembremos a fórmula que dá a soma dos termos de uma progressão geométrica. Dado qualquer número q 1, chamado razão da progressão, e n um inteiro positivo arbitrário, pomos

S = 1 + q + q2 + q3 + . . . + qn

e observamos que

qS = q + q2 + q3 + q4 + . . . + qn+1

Portanto, subtraindo a primeira dessas igualdades da segunda, obtemos

que é a desejada fórmula da soma que será usada nos cálculos a seguir.

— Traga logo um saco inteiro (60 kg, aproximadamente 1 380 000 grãos) - ordenou o administrador a um dos servos -, depois você leva de volta o que sobrar. Ao mesmo tempo providenciou a vinda de mais uma dezena de contadores de trigo para ajudar na tarefa, que se tornava mais e mais trabalhosa.

O administrador, os servos e os contadores já haviam terminado com 10 sacos de trigo (= 10 x 60 x23 000 = 13 800 000 de grãos) e mal haviam passado da 23 casa do tabuleiro, visto que

1 + 2 + 22 + 23 + ... + 222 = 223 1 = 8 388607

1 + 2 + 22 + 23 + ... + 223 = 224 1 = 16 777215.

A essa altura o rei foi notificado do que estava acontecendo e alertado de que as reservas do celeiro real estavam sob séria ameaça. Insistindo, porém, em atender ao pedido de seu súdito, ordenou que o trabalho continuasse. Mandou convocar mais servos e mais contadores; ao mesmo tempo, mandou chamar os melhores calculistas do reino para uma avaliação do problema. Esses vieram e, cientificados do que se passava, debruçaram-se nos cálculos. Em menos de uma hora de trabalho, puderam esclarecer o rei de que não havia trigo suficiente em seu reino para atender ao pedido de Sissa. Mais do que isso, em todo o mundo conhecido na época não havia trigo suficiente para atender àquele pedido!

No tempo em que isso aconteceu, pensava-se que o mundo fora criado havia menos de 5 000 anos. Assim, os calculistas do rei puderam dizer-lhe que nem mesmo toda a produção mundial de trigo, desde a criação do mundo, seria suficiente para atender ao pedido de Sissa. (A essa altura dos acontecimentos é de se supor que o rei Shirham estivesse, no mínimo, irritado com o pedido de Sissa, e que este, portanto, estivesse em sérias dificuldades perante o rei, que en­feixava em suas mãos todos os poderes sobre seus súditos, inclusive o de poder mandar cortar a cabeça de Sissa...)

Com os dados de que hoje dispomos, podemos fazer uns cálculos simples e interessantes. Sabemos que a produção brasileira de trigo em 1992 foi de 2,839 milhões de toneladas, um total de

65 297 000 000 000 grãos, quando o número de grãos pedido por Sissa era exatamente

1 + 2 + 22 + 23 + ... + 263 1 = 264 l = 18446744073709551615.

Ora, este número dividido pelo número de grãos de trigo que o Brasil produziu em 1992 é certamente maior do que

18 x 1018 72 x 1012 = 250 000.

Isso significa que seriam necessários mais do que 250000 anos de produção brasileira de trigo, no nível da safra de 1992, para atender ao pedido de Sissa. (A divisão, sem aproximação dos números, dá 282 505 anos.)

— Produção brasileira não vale, o Brasil produz muito pouco trigo - poderá reclamar um leitor mais exigente. Tudo bem, vamos à produção mundial, que, em 1992, foi de 565,52 milhões de toneladas, de acordo com dados da FAO. Fazendo os cálculos como antes, concluímos que seriam necessários cerca de 1 420 anos de produção mundial de trigo no nível de hoje para atender à demanda de Sissa. Agora, sendo realista mesmo e considerando a produção mundial verdadeira - que não foi sempre no nível de hoje -, certamente teríamos de recuar muito mais tempo no passado: seguramente, todo o trigo que tem sido cultivado nos últimos 10 000 anos, isto é, desde o início da agricultura em nosso planeta, não seria suficiente para atender ao pedido de Sissa.

 

     Como calcular   264 ?

Sim, essa pergunta deve ter ocorrido ao leitor enquanto acompanhava a história que acabamos de contar. Hoje em dia é muito fácil calcular um número como 264, valendo-se de um dos vários programas implementados em computador. Eu usei aqui o programa MATHEMATICA, implementado num micro 486. Os cálculos ficam extremamente simples, cada um levando apenas uma fração de segundo para ser executado.

Mas, e quando não havia computador? Como fizeram os calculistas indianos do tempo de Shirham e Sissa, há mais de um milênio atrás? Bem, se fosse há uns 300 anos, eles poderiam recorrer aos logaritmos.

Para efetuar cálculos com a ajuda dos logaritmos, primeiro é preciso dispor de uma tábua (ou tabela) dos logaritmos dos números num certo intervalo. Por exemplo, uma tábua dos logaritmos decimais dos números inteiros de 1 a 10 000 já é suficiente para muitos cálculos. A título de ilustração, tentemos calcular o número N = 264. Consultando uma tábua (de logaritmos decimais), encontramos  log2 0,30103,   de sorte que

 = 64 x log2 64 x 0,30103 = 19,26592.

Este cálculo já é suficiente para sabermos que N está compreendido entre 1019 e 1020, pois seu logaritmo é maior do que 19 e menor do que   20,  o que já é uma boa informação.

O logaritmo de um número pode sempre ser escrito como a soma de um inteiro - chamado característica - e uma parte decimal m tal que 0 m < 1, chamada mantissa. No caso do número N a calcular, 19 é a característica e 0,26592 é a mantissa de seu logaritmo.

As tábuas só dão as mantissas. Mas, ao consultarmos uma tábua, nem sempre encontramos, na coluna dos logaritmos, a mantissa desejada. No caso concreto que estamos considerando, ao consultar a tábua, verificamos que o logaritmo 0,26592 está compreendido entre dois outros que lá se encontram; mais precisamente,

log 1,844 = 0,26576   e    log 1,845 = 0,26600.

A partir daqui, fazemos uma interpolação para determinar o número que tem  0,26592   como logaritmo. Encontramos

0,26592 log 1,844666...,

donde,  log (1,844666... x 1019) 19,26592;  e daqui segue que

N = 264 1,844666... x 1019 18446666666666666 666.

Comparando este valor aproximado com o valor exato calculado acima, verificamos que o erro relativo é inferior a 10-5; portanto, o valor aproximado é muito bom.

Mas como teriam os calculistas indianos feito seus cálculos, há uns mil anos, sem ajuda dos logaritmos. Eles podiam fazer a multiplicação diretamente, como ensinamos na escola primária, com ajuda da tabuada. Por exemplo, multiplicando 210 = 1 024  por si mesmo, encontramos 220 = 1048 576. Agora é só multiplicar este último número por si mesmo duas vezes (220 x 220 x 220) e o resultado por 16 (= 24). Embora trabalhosa, trata-se de uma tarefa não de todo descabida há algum tempo, quando não havia computadores e os alunos aprendiam a fazer qualquer conta de multiplicação.

 

     Um outro número muito grande

Como vimos na história acima, 1020 é um número muito grande, superior mesmo a todos os grãos de trigo já produzidos no mundo desde que o homem começou a praticar a agricultura. Eis aqui um outro número fantasticamente grande: 1075, calculado como superior ao número de todos os átomos existentes no universo atualmente conhecido, aí incluídas todos os 100 bilhões de galáxias nele existentes. Ora, o universo como o conhecemos hoje possui cerca de 18 galáxias para cada um dos mais de 5 bilhões de habitantes do planeta! Como cada galáxia, por sua vez, possui cerca de 100 bilhões de estrelas, se repartíssemos todas essas estrelas com os habitantes que hoje vivem no planeta Terra, tocaria para cada um cerca de 18 x 100 bilhões de estrelas! Comparando estrelas com trigo, podemos dizer que a quantidade de estrelas existentes no universo hoje conhecido é suficiente para distribuí-las entre os habitantes de nosso planeta, dando a cada um tantas estrelas quantos são os grãos de trigo existentes em mais de 780 toneladas desse cereal...
 

 

     O Logaritimo e a  Exponencial

Números grandes como esses são fruto da função exponencial. Estamos aqui falando de exponenciais como 10x e 2x. Existe uma função exponencial fundamental, que dá origem a todas as outras, por isso mesmo chamada a exponencial, dada por   y = ex,  onde e é um número aproximadamente igual a 2,7, chamado base dos logaritmos naturais, e que pode ser definido como o número cujo logaritmo natural é igual a 1. Pois bem, quando o logaritmo e a exponencial são ensinados no 2 grau, é costume fazer o gráfico dessas funções. Mas, infelizmente, esse "aspecto funcional" não é devidamente enfatizado. O ensino continua sendo feito como se "logaritmo" fosse apenas um instrumento de cálculo à moda antiga. E nem sempre o aluno é devidamente alertado para o crescimento tão rápido da exponencial com o crescer da variável x, ou para o crescimento tão vagaroso do logaritmo. Os livros mostram os gráficos dessas funções, porém, sem analisá-los em muitos de seus aspectos interessantes. Vejam aí esses gráficos, nas Figs. 1 e 2 respectivamente. Na Fig. 3 reproduzimos os dois gráficos juntos, para exibir claramente o fato de que um é o simétrico do outro em relação à reta  y = x, já que as funções

x y = ex    e    x y = lnx

são inversas uma da outra.

Suponhamos que você, professor, estivesse ensinando essas funções a seus alunos. Pois bem, faça os gráficos delas na lousa, mas proponha a sua classe a seguinte "brincadeira" (que, por sinal, vai animar muito a turma):

- Pessoal, agora vocês vão fazer o gráfico da função exponencial vocês mesmos, aí no caderno. Você, Marcelo, venha à lousa me ajudar; eu vou dando os números (se você tiver uma calculadora de bolso, use-a para fazer os cálculos na hora, fica mais interessante) e você vai escrevendo. Vamos começar fazendo uma tabela (mostrada logo adiante), pondo numa primeira coluna alguns valores de x, numa segunda coluna vamos pôr os valores correspondentes da função y = x2, só para efeito de comparação; e, finalmente, numa terceira e última coluna listamos os valores correspondentes de  y = ex . Vamos usar a mesma unidade de comprimento nos dois eixos, digamos, o centímetro. Vamos lá pessoal.

Veja a tabela que Marcelo escreveu na lousa, com valores arredondados:
 

 

x

y = x2

y = ex

0

0

1 cm

3

4

20 cm

5

25

148 cm

10

100

220 m

15

225

33 km

20

400

4 852 km

30,3357

920

distância da Terra ao Sol

41,39

1713

1 ano-luz

42,85

1836

4,3 anos-luz

distância da Terra ao Sol = 149 500 000 km

1 ano-luz = 946 728 . 107

4,3 anos luz = 407 093 . 108    km = dist. da estrela mais próxima do Sol

________________________________
Agora veja até onde você, professor, e sua turma conseguem ir na construção do gráfico. Quando x = 5 cm, Marcelo terá de marcar 25 cm na vertical para a função y = x2 e 148 (quase um metro e meio) para a função exponencial; quando x = 10 cm, Marcelo terá de marcar, na vertical,  x2 = 100 cm = 1 metro  e   ex = 220 metros,  a altura de um prédio de mais de 70 andares! Quando x passa por volta do valor 30 cm e x2 por volta de 9 metros, ex já está assumindo a distância da Terra ao Sol! E quando x estiver por volta de 40 cm e x2 por volta de 1700 metros, ex estará assumindo o valor de um ano-luz; e 4,3 anos-luz, ou seja, a distância da estrela (Alfa do Centauro) mais próxima de nós, quando x for pouco mais de 42 cm!

Estes poucos cálculos mostram claramente o quão rapidamente cresce a função exponencial com o crescer de seu argumento.

Em correspondência ao rápido crescimento da função exponencial está o vagaroso crescimento do logaritmo. De fato, como estamos lidando com funções que são a inversa uma da outra, o gráfico do logaritmo é simplesmente o reflexo do gráfico da função exponencial em relação à reta y = x, como ilustra a Fig. 3. Isto significa que na tabela acima a 3 coluna da tabela representa os valores de x e a 1 representa os correspondentes valores de lnx. Assim, para conseguirmos subir 25 cm na vertical das ordenadas é preciso fazer  x = 148 cm; para subir   10 cm  é preciso andar  20 metros na horizontal; para subir apenas 20 cm é preciso caminhar 4 852 km na horizontal; para subir pouco mais de 40 cm é preciso caminhar 1 ano-luz na horizontal! E assim por diante. A função y = lnx é realmente uma função de crescimento muito vagaroso.

A esta altura é provável que os alunos tenham a curiosidade bastante aguçada e façam várias perguntas, querendo saber, por exemplo, o porquê desse misterioso número e, base dos logaritmos naturais. Por que não uma outra base, como 10 ou 2? Quem sabe voltaremos a esses assuntos, em outros números da RPM.

Se você nasceu aí por volta de 1975, seus 2 pais provavelmente nasceram por volta de 1950; seus 4 avós por volta de 1925 e seus 8 bisavós por volta de 1900. Assim, um período de 100 anos comporta mais ou menos 4 gerações sucessivas de pessoas. Pois bem, que tal remontar ao tempo de Jesus Cristo, há 2 000 anos? São 20 séculos, 20 x 4 = 80 gerações de pessoas. Quantos ancestrais você teria naquele tempo? Veja: é necessário multiplicar o número de pessoas de uma geração por 2 para se obter o número de pessoas da geração anterior. Portanto, começando com uma pessoa hoje, teremos de realizar 79 multiplicações. Assim, o número de seus ancestrais no tempo de Cristo seria de 279, superior ao número de átomos do universo! Certo ou errado? E se assim eram as coisas há dois milênios, que dirá no tempo de Adão e Eva? Explique!