Vincenzo Bongiovanni *
Santos, SP

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Adaptação do Comitê Editorial da RPM, aprovada pelo autor

Certa vez, numa aula para o terceiro colegial, surgiu a pergunta: Quantos são os racionais entre 0 e 1 e quantos são os reais entre 0 e 1? Os alunos concordaram que em ambos os casos há infinitos números, mas um aluno não se conformou com essa resposta: "Se todos os racionais são também reais e há mais reais do que racionais como podem ser contados pelo mesmo número? 0 todo não é sempre maior do que qualquer de suas partes?"

Como foi grande o interesse da turma pelo assunto, reproduzo aqui a conversa que tive com eles.

O infinito é um assunto que intriga os pensadores desde séculos antes de Cristo.

Como procedemos para contar? Se numa sala de aula, a cada aluno corresponder uma única carteira e a cada carteira um único aluno, concluímos que o número de alunos é igual ao número de carteiras. Em geral, se for possível estabelecer uma correspondência biunívoca (correspondência bijetora ou bijeção) entre um conjunto A e o conjunto {1,2,3,... ,n}, dizemos que o número de elementos do conjunto  A  é  n.

No século XVI, entretanto, GALILEU (1564-1642), em seu livro Diálogo sobre duas novas ciências, observou ser possível estabelecer uma correspondência biunívoca entre uma parte de um conjunto e esse conjunto todo, fazendo corresponder a cada número natural o seu quadrado. Com efeito, a correspondência que a n faz corresponder n2, é uma bijeção entre o conjunto de todos os naturais e o conjunto dos quadrados perfeitos, que é parte do anterior. Então, haveria tantos quadrados perfeitos quantos naturais, mas todos os quadrados perfeitos não são particulares naturais? Foi já quase no nosso século que o matemático CANTOR (1845-1918) deu uma forma convincente à distinção entre os vários "infinitos".

CANTOR generalizou a idéia de número de elementos de um conjunto, considerando como sendo de mesma cardinalidade (ou tendo o mesmo número cardinal) dois conjuntos entre os quais possa ser definida uma correspondência biunívoca. Se existe uma bijeção entre os conjuntos A e B, escreve-se Card A = Card B. A observação de GALILEU pode, então, ser enunciada como:

o conjunto dos números quadrados perfeitos tem a mesma cardinalidade que o conjunto N dos números naturais, embora um seja parte própria do outro.

Aliás, isso de existir uma parte com mesmo cardinal que o conjunto todo é uma caracterização dos conjuntos infinitos, conforme observou CANTOR - isto é, os conjuntos infinitos têm partes (próprias) que estão em correspondência biunívoca com o conjunto todo. Isso só acontece com conjuntos infinitos. Com efeito, se tiramos um elemento, mesmo que seja um só, de um conjunto finito, obtém-se um conjunto com número de elementos menor do que o de saída, mas de um conjunto infinito pode-se tirar até uma infinidade de elementos, sem diminuir seu número cardinal, desde que isso se faça de maneira conveniente.

E o que acontece com N se tirarmos todos os ímpares. A correspondência f(x) = 2x mostra que o conjunto dos números naturais pares tem a mesma cardinalidade que N. Também o conjunto dos naturais ímpares tem a mesma cardinalidade que N, o que se vê tomando a correspondência definida por   f(x) = 2x + 1. Ou   Card N = Card Z   pois

f(x) = 2x 1,    se x > 0       e        f(x) 2x,    se x 0.

Resultado mais surpreendente é que também   Card N = Card Q,   onde Q é o conjunto dos números racionais. De fato, observe inicialmente que os racionais positivos têm a mesma cardinalidade que N; basta para isso "contar" as frações irredutíveis, ordenando-as de forma que a soma do numerador e denominador seja crescente e, quando têm a mesma soma, ordenando pelo numerador, como sugerido na tabela seguinte:
 

0

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

11

12

13

14

15

. . .

 

0

. . .

A enumeração de todos os racionais pode ser feita de modo análogo, encaixando os negativos na seqüência acima da seguinte forma:

 

0

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

11

12

13

. . .

 

0

. . .

CANTOR chamou de enumeravei todo conjunto de mesma cardinalidade que N e deu o nome de 0 (que se lê áief zero, - aleph - é a primeira letra do alfabeto hebreu) a esse cardinal. Escreve-se, então,  Card N = Card Q = 0.

Terão, então, todos os conjuntos infinitos o mesmo cardinal? A resposta é não! CANTOR mostrou também que havia infinitos diferentes, ou seja, existem conjuntos com infinitos elementos, mas de diferentes cardinalidades, ou, ainda, existem conjuntos infinitos entre os quais não há uma correspondência biunívoca.

Seu primeiro trabalho de impacto, publicado em 1874, dava conta de que não pode haver uma bijeção entre os conjuntos dos números reais e o dos naturais. Uma prova desse fato se encontra no artigo de Geraldo Ávila, A teoria dos conjuntos e o ensino de Matemática, na RPM 4, p. 4 e, novamente, no apêndice, no fim deste artigo.

Dessa forma, fica evidente que há infinitos diferentes entre si. Se existir uma correspondência injetora de um conjunto A num conjunto B, mas não puder ser construída uma correspondência injetora de B em A, diz-se que Card A < Card B. CANTOR deu o nome de continuum ao cardinal de R, que indicava por C. Os cardinais de conjuntos infinitos se dizem números transfinitos, dos quais 0 é o menor.

A função f(x) = cotg x, para x variando entre 0 e 1, define uma correspondência bijetora entre o intervalo (0, 1) e o conjunto R  dos números reais, mostrando que   Card(0, 1) = C
 

Podemos, também, observar que dois segmentos quaisquer têm a mesma cardinalidade, construindo a bijeção geometricamente a partir do esboço gráfico ao lado. 

Resumindo:   qualquer  intervalo tem a mesma cardinalidade que a reta, isto é, existe uma correspondência biunívoca entre os números de um intervalo e todos os números reais, ou, geometricamente, existem tantos pontos num segmento quantos na reta toda.

Tais resultados eram surpreendentes para o próprio CANTOR, que, certa vez, em 1877, escreveu numa carta para DEDEKIND, outro matemático da época interessado no assunto: "Eu vejo isto, mas não acredito". Em 1878 CANTOR provou que também o plano R2 ou o espaço R3 tinham a mesma cardinalidade que R, ou seja, existem "tantos" pontos no plano ou no espaço quantos existem na reta.

Uma pergunta, que ficou conhecida como a hipótese do continuum, é se existe ou não um número transfinito entre 0 e C. Esta questão ficou sem resposta até 1963, quando COHEN, um matemático norte-americano, mostrou que é impossível responder a essa pergunta com os axiomas usuais da Teoria dos Conjuntos. A prova desse fato e mesmo o seu enunciado preciso envolvem delicadas considerações sobre a axiomática da Teoria dos Conjuntos.

A descoberta mais notável de CANTOR nesse âmbito foi, entretanto, provar que se pode encontrar sempre um conjunto maior do que qualquer conjunto dado. Esse resultado é conhecido como o teorema de CANTOR e pode ser enunciado da seguinte forma:

Teorema de CANTOR.    Card A < Card (A),
onde (A)  é o conjunto das partes de  A.

Dessa forma é possível construir uma seqüência infinita de números transfinitos:

 0 < C <Card(R) < Card[(R)] < Card { [(R)]}<. . .

A teoria criada por CANTOR era intuitiva e permitiu o surgimento de algumas contradições que se tornaram paradoxos. A descoberta desses paradoxos abriu uma crise profunda na esperança dos matemáticos de utilizarem a nova teoria para unificar vários ramos da Matemática ou mesmo de outras ciências. Aí, então, teve início a axiomatização da Teoria dos Conjuntos, em 1908, com o matemático alemão ZERMELO (1871-1956) e, a partir daí, ela se transformou em alicerce indispensável para fundamentar a Matemática, levando outro grande matemático alemão, HILBERT (1862-1943), a afirmar:

ninguém nos expulsará do paraíso que CANTOR nos criou.

Terminei a aula perguntando aos alunos: Quantos são os racionais entre 0 e 1 e quantos são os reais entre 0 e 1? E eles responderam 0  e   C!

Referências Bibliográficas

[l]   ÁVILA, G. A teoria dos conjuntos e o ensino de Matemática.   RPM 4, SBM, 1984.

[2]  BOYER, C. B. História da Matemática.. São Paulo, Edgard Blikher, 1974.

[3] GUNDLACH, B. H. Números e numerais, da Coleção Tópicos de História da Matemática para uso em sala de aula. São Paulo, Atual Editora, 1992.

[4]   HALMOS, P. R. Teoria ingênua dos conjuntos. São Paulo, Polígono, 1970.

 

Vincenzo Bongiovanni é licenciado em Matemática pelo Instituto de Matemática e Estatística da USP e mestre em Matemática pela PUC-SP. Leciona no Colégio Universitas e na Universidade Católica de Santos e é autor de vários livros didáticos.

 

     APÊNDICE

Para mostrar que não pode haver uma bijeção entre o conjunto dos números reais e o dos números naturais, basta verificar que já os números do intervalo [0,1] não podem ser postos em correspondência biunívoca com N. Ou seja, estabelecida uma correspondência que a cada número natural faça corresponder um número real entre 0 e 1, haverá sempre algum número real entre 0 e 1 não atingido. Ainda, em outras palavras, uma correspondência de N em [0,1] R-nunca será sobrejetora e, portanto, nunca será bijetora.

Para expor esse número não atingido, vamos usar a representação decimal dos números reais com a seguinte convenção:

      se o número for irracional, usaremos a única representação decimal (infinita) que ele possui;

      se o número for racional, não nulo, ele poderá ter uma representação periódica única (uma dízima com período diferente de 9), ou ter duas representações decimais, a finita e a periódica de período 9 (0,25 = 0,24999. . ., ; 1 = 0,999. . .). Nestes casos, usaremos a representação infinita.

      Para o número 0 usaremos a representação infinita 0,000. . . .

Agora, usando para cada número real a sua única representação decimal infinita, façamos a correspondência

1

2

3

4

. . .

n

. . .

 

 

x1

x2

x3

x4

. . .

xn

. . .

onde   x1, x2, . . . xn , ...  são números reais entre   0   e   1,   cuja representação decimal começa com   " 0, ".

Para exibir um número x que não seja nenhum desses, começamos a construir um número x' que, começando por " 0, ", tenha a primeira casa decimal igual à primeira casa de x1 , a segunda casa decimal igual à segunda casa de x2, a terceira igual à terceira de x3, e assim por diante, a n-ésima casa decimal igual à n-ésima casa de xn. Esse número x' pode coincidir com algum número da seqüência   xn.

Mas seja x o número que tenha um 9 onde o algarismo de x' não seja 9 e um 5 onde o algarismo de x' seja 9. Esse número x certamente não pode coincidir com nenhum dos xn , pois deve diferir de cada um deles pelo menos na n-ésima casa. Também não há perigo de se chegar a uma representação finita, pois x, assim construído, não terá casas decimais nulas. No exemplo dado na RPM 4, tem-se:

1

x1 = 0,20537 . . .

2

x2 = 0,09504 . . .

3

x3 = 0,61028 . . .

4

x4 = 0,00999 . . .

5

x5 = 0,70298 . . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  . .

x' = 0,29098. . .     e     2 = 0,95959. . .

E, assim,    x xn ,    qualquer que seja   n.