Sobre Frações Próprias, Impróprias e Aparentes

Seiji Hariki
IME-USP, São Paulo, SP

Nesta nota trataremos de um assunto pouco explorado nos artigos sobre ensino de Matemática, a saber, a divergência de autores de livros didáticos quanto às definições e categorizações de objetos matemáticos. Aqui focalizaremos a divergência quanto à classificação de frações.

Aproveitaremos o ensejo para sugerir uma construção significativa do conceito de fração imprópria.

 

     1. Classificação de frações

Vamos comparar as classificações de frações de três grupos de autores de livros didáticos:

O grupo A de autores classifica as frações em:

-     fração própria: o numerador é menor do que o denominador;

-     fração imprópria: o numerador é maior ou igual ao denominador;

-     fração aparente: o numerador é um múltiplo do denominador.

Esta classificação tem um aspecto positivo e dois negativos. Por um lado, ela faz uma dicotomia, contrapondo fração própria a fração imprópria: dada uma fração, ou ela é própria, ou ela é imprópria. Tal oposição está conforme a linguagem comum, na qual imprópria. significa precisamente a negação de própria.

Por outro lado, essa divisão das frações em 3 classes não é perfeita, pois a classe das frações aparentes tem interseção com a das frações impróprias.   Por exemplo,   19/19   é uma fração ao mesmo tempo aparente (19 é múltiplo de si mesmo) e imprópria (o numerador e o denominador são iguais a 19).

Finalmente, segundo essa classificação, a fração 0/1 é, ao mesmo tempo, uma fração própria (o numerador é menor do que o denominador) e uma fração aparente (o numerador é múltiplo do denominador).

O grupo B de autores classifica as frações em:

-     fração própria: o numerador é menor do que o denominador;

-     fração imprópria: o numerador é maior do que o denominador;

-     fração aparente: o numerador é um múltiplo do denominador.

Esta classificação tem, a nosso ver, três defeitos:

(a) ela não dicotomiza própria, e imprópria, pois, em Matemática, ao contrário do que ocorre na linguagem comum, a negação de menor é maior ou igual a; (b) a classe de frações aparentes não é disjunta da classe das impróprias; (c) a classe das frações aparentes intersecta a classe das frações próprias.

O grupo.C de autores apresenta a seguinte classificação:

-     fração própria: o numerador é menor do que o denominador;

-   fração imprópria: o numerador é maior do que o denominador mas não é múltiplo do   mesmo;

-     fração aparente: o numerador é um múltiplo do denominador.

Esta é uma classificação aparentemente tricotômica: o conjunto das frações é dividido em 3 classes disjuntas. No entanto, este grupo também não consegue atentar para as frações em que o numerador é zero, que seriam tanto próprias como aparentes. Além disso, o problema da nomenclatura permanece: uma fração que não é própria não é, segundo esta classificação, necessariamente imprópria.

Observamos que os três grupos concordam quanto às definições de fração própria e aparente; no demais, elas divergem entre si. Por exemplo, para o grupo A, 5/5 é uma fração imprópria, enquanto para os grupos B e C, ela não é. Quanto à fração 10/5, os grupos A e B concordam que ela é imprópria, mas o grupo C diz que não.

E aí, como é que fica? Qual classificação se deve escolher? Qual delas é correta? Ou será que tanto faz?

Do meu ponto de vista, deveríamos dividir as frações em próprias e impróprias.  Frações próprias são aquelas que são maiores do que 0 e menores do que 1. Todas as outras frações são consideradas impróprias. Julgando-se conveniente, podem-se destacar, dentre as impróprias, as frações aparentes, que são aquelas que representam números naturais.

Em termos de representação (numerador e denominador), as definições ficariam sendo as seguintes:

-     fração própria: o numerador é menor do que o denominador e é diferente de zero;

-     fração imprópria: o numerador é maior ou igual ao denominador ou igual a zero.

       Como caso particular de fração imprópria, teríamos:

    fração aparente: o numerador é múltiplo do denominador.*


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NR: O uso dos nomes "própria", "imprópria", "aparente", no início do aprendizado, decorre da necessidade de enfatizar a diferença entre o significado de "fração" na língua corrente e o seu significado em Matemática, porém os nomes em si não merecem muito destaque, uma vez que, passada a fase inicial do aprendizado, eles deixam de ser usados. O fato de um número racional ser maior, menor ou igual a um nada tem de especial (salvo em problemas específicos).

 

     2.   Como ajudar os alunos a construir significativamente o conceito de             fração imprópria?

A fração própria refere-se ao conceito usual de fração: para a maioria das pessoas, fração é uma parte do todo; o Dicionário Aurélio cita como exemplo fração de segundo (que seria uma parte do segundo, algo menor que um segundo). Isto quer dizer que fração no sentido usual corresponde ao que, em Matemática, chamamos de fração própria.

Um problema didático difícil é o da apresentação aos alunos do conceito de fração imprópria: que sentido atribuir, por exemplo, à fração 5/2?

Em certas situações, 5/2 significa 5 vezes 1/2. Por exemplo, um glutão comeu 5/2 de torta, isto é, 5 metades de torta, que, do ponto de vista matemático, é igual a 2 tortas e meia.

Em outras situações, 5/2 significa metade de 5. Por exemplo, dona Maria quer distribuir eqüitativamente 5 pedaços de pizza para seus dois filhos.   Ela certamente vai dar, para cada um, 2 pedaços inteiros e mais a metade do quinto pedaço. Assim, cada filho recebe 5/2  pedaços de pizza.

Em resumo, 5/2 pode, de acordo com o contexto, significar uma das duas coisas: 5  vezes   1/2  (5 metades)  ou  1/2  vezes  5  (metade de 5).

 

     3. Frações e medidas

Uma conexão que se poderia fazer, mas quase nunca é feita nos livros didáticos de hoje, é entre frações impróprias e a questão da comensurabilidade de segmentos. Mais precisamente, o conceito de fração imprópria pode ser construído a partir do problema da comparação entre segmentos (segmentos comensuráveis).

O problema geral seria o seguinte: sejam dados dois segmentos AB e CD, tais que AB é mais comprido do que CD. É possível medir  AB, utilizando  CD  como unidade de medida?

Em caso afirmativo, CD caberia um número exato de vezes em AB. Em caso negativo, perguntaríamos: é possível dividir CD num número finito de partes iguais, de modo que uma dessas partes coubesse um número exato de vezes no segmento AB?

Em caso afirmativo, veríamos o aparecimento de uma fração imprópria m/n, com m maior do que n (m/n representaria neste caso  vezes   l / n).

É claro que se mudarmos a escala do eixo numérico, utilizando l / n como uma nova unidade, obteríamos os números da forma m/n, com m variando no conjunto dos números naturais, e assim apareceriam, de modo natural, as frações aparentes (quando m é um múltiplo de  n).

Uma questão que ficaria "pendurada" é a da existência ou não de segmentos não-comensuráveis, um mistério a ser desvendado em cursos mais avançados (v. RPM 5, pp. 6-11).

Desse modo, seria dada uma interpretação geométrica aos conceitos de fração imprópria e fração aparente. 0 que a maioria dos autores de livros didáticos faz é introduzir tais frações num processo de classificação, levando em conta apenas a sua representação simbólica, ou a relação puramente aritmética de um número ser múltiplo do outro, ou então propondo uma operação fisicamente impossível como a de dividir uma pizza em 5 pedaços iguais e comer 8 deles ...