|
|
||||
Geraldo Ávila
É bem sabido que o ensino da Matemática na escola do 1.° e 2.° graus vive uma crise crônica há muitos anos. Deixando de lado os fatores sócio-econômicos e políticos, abordaremos aqui tão-somente as dificuldades ligadas diretamente ao ensino nas escolas. Essas dificuldades vêm se perpetuando desde o início da década de sessenta, quando o ensino da Matemática passou por uma reforma profunda, que deu origem ao que se convencionou chamar de Matemática Moderna. As características principais dessa reforma foram uma ênfase acentuada na utilização da linguagem de conjuntos e numa apresentação excessivamente formal das diferentes partes da Matemática. Foi uma reforma radical. Os reformistas contaram, desde o primeiro instante, com adeptos fervorosos e poucos opositores. A maioria dos professores — e mesmo alguns eminentes matemáticos — apoiava as mudanças com entusiasmo. Mas, com o passar do tempo, a ineficácia da Matemática Moderna ia-se tornando mais e mais evidente. Os opositores do movimento foram aumentando em número e contando, cada vez mais, com o apoio de pesquisadores de grande prestígio. Em conseqüência disso, e das muitas críticas que então se faziam à Matemática Moderna, aliadas às evidências da ineficácia dessa orientação para o ensino, novas mudanças começaram a ser feitas, no sentido de corrigir os rumos que vinham sendo seguidos. Na maioria dos países a crise da Matemática Moderna foi superada e já é coisa do passado. No Brasil, entretanto, não obstante os avanços que têm sido feitos nos últimos quinze anos aproximadamente, convivemos ainda com fortes resquícios daquelas idéias dos anos sessentas.
O ensino de Matemática como era feito antes da reforma da Matemática Moderna dos anos sessentas realmente continha muitas deficiências. Não levava em conta aspectos importantes da psicologia do aprendizado que, felizmente, vêm recebendo, hoje em dia, mais atenção. Mas a reforma trouxe inovações desastrosas, algumas das quais persistem, não obstante as mudanças salutares dos últimos anos. Assim é que os livros do 1.° e 2.° graus continuam carregados de simbolismo e linguagem de conjuntos que mais atrapalham do que ajudam o aluno em seu esforço de aprendizagem.
A Matemática, em particular, depende muito de sua linguagem e simbolismo específicos. Mas é também a linguagem e o simbolismo próprios da Matemática que a fazem tão inacessível, principalmente ao leigo, mesmo ao "leigo erudito". Assim, podemos dizer, em certo sentido, que a linguagem e o simbolismo da Matemática são um "mal necessário". (Aliás, é interessante notar que demorou muito para que esses elementos tão decisivos no progresso da Matemática se desenvolvessem com toda força. Isso só veio a acontecer a partir do século XVI, com o desenvolvimento da notação e do formalismo da Álgebra.) Por causa mesmo dessas dificuldades inerentes à linguagem e ao simbolismo é que se torna tão necessário o devido cuidado na boa utilização desses instrumentos,para que eles exerçam seu desejado papel no aprendizado, e não o prejudiquem. Linguagem e simbolismo são muito úteis e indispensáveis enquanto ajudam na transmissão e na agilização das idéias. Infelizmente, o que acontece no ensino elementar é que a linguagem de conjuntos e o excesso de simbolismo e terminologia, além de não ajudarem, só atrapalham. Por exemplo, não há benefício algum em insistir com as crianças na distinção entre "número" e "numeral". Ao contrário, isto só traz prejuízos, criando uma preocupação desnecessária na mente do aluno. Do mesmo modo, para introduzir a idéia de "função" não é preciso apelar para produto cartesiano de conjuntos, muito menos para a noção de relação, como costuma ser feito; isto nada tem de motivador. Em situações como essas, o excesso de linguagem obstrui o mais importante, que são as idéias. Por exemplo, é muito mais natural e mais fácil dizer "2 e 5 são as raízes da equação x2 7x + 10 = 0" do que "o conjunto verdade da sentença x2 7x + 10 = 0 é V = {2,5}". Aliás, nenhum matemático profissional diz isso. O natural é seguir o costume dos matemáticos profissionais, e não ficar inventando pedantismos artificiais como esse. E é importante observar que linguagem não motiva ninguém, idéias sim. Nenhum aluno pode se interessar por qualquer coisa onde não veja algum elemento que lhe satisfaça ou aguce a curiosidade. O mesmo é verdade no caso dos matemáticos que contribuíram para o desenvolvimento de sua ciência. Eles estavam sempre interessados nas idéias e nos métodos e técnicas delas resultantes. Foram introduzindo linguagem e simbolismo por necessidade prática. O mesmo devemos fazer no ensino: só introduzir esses elementos quando eles se fizerem necessários para auxiliar no aprendizado de coisas verdadeiramente relevantes.
Há um certo consenso, entre professores, em que realmente a linguagem de conjuntos quase nada tem a ver com o que se deve ensinar. No entanto, as desejadas mudanças não se operam, e isto por várias razões. Os cursos de licenciatura das universidades e faculdades nem sempre estão bem estruturados para preparar devidamente seus alunos para as tarefas de ensino no 1.° e 2.° graus. Os próprios professores que lecionam nesses cursos de licenciatura muitas vezes não estão devidamente motivados para essas tarefas. As provas de muitos concursos públicos e de vários exames vestibulares continuam apresentando questões sobre conjuntos, linguagem e formalismo inconseqüente. Finalmente, os autores e editores de livros-textos também são responsáveis pela presente situação, pois são eles que põem no mercado o instrumental básico do professorado de todo o país. E evidente, pois, que não haverá mudanças no ensino enquanto não houver mudanças nos livros-textos. Como se vê, depende desses profissionais, mais que de quaisquer outros, a possibilidade das mudanças desejadas. Possam eles tomar consciência das melhorias possíveis, eliminando dos livros os elementos negativos e prejudiciais no ensino-aprendizagem da Matemática, abrindo assim o caminho para o trânsito livre e fácil das idéias.
Um aspecto importante a ser notado nas sucessivas reformas do ensino é a preservação de coisas antigas, não obstante a insistência em "modernidade". Fala-se muito em "modernizar" o ensino, mas essas "modernizações" não se livram de verdadeiros esqueletos cuidadosamente preservados intactos nos novos programas... Um exemplo disso é o tópico razões e proporções, que continua sendo apresentado hoje como o era há cem ou duzentos anos. Não mudou, não evoluiu.
como antecedente, conseqüente, e em outras coisas inúteis como a famigerada regra de três composta. Em dois artigos na Revista do Professor de Matemática (RPM 8 e 9) tratamos essa questão detalhadamente, mostrando que tudo não passa de constatar uma relação de dependência funcional entre duas ou mais grandezas, nada mais; o resto é resolução de equações simples. Procuramos mostrar, nesses artigos, que o ensino dessa dependência é uma boa oportunidade para uma primeira introdução do conceito de função e de trabalho com gráficos, já no 1.° grau. Regra de extração da raiz quadrada, sistemas lineares e equações de um modo geral são tópicos cujo ensino não se modernizou e que continua sendo feito de maneira anacrônica e desatenta para a realidade das calculadoras de bolso, já bastante disseminadas e acessíveis. É mais que tempo de ensinarmos métodos de aproximação no 2° grau, adequados a cálculos aproximados. (Sobre sistemas lineares, veja-se, a propósito, o artigo do Professor Elon Lages Lima, neste mesmo número da RPM.) A propósito da raiz quadrada, o que se devia ensinar é a sequência recorrente an+i = (an + l / an) / 2. (Veja RPM 2, p. 27; RPM 4, pp. 25-27; RPM 8, pp. 65-66; RPM 21, pp. 11-17.) Como se vê, o estudo dessa seqüência situa-se muito bem num estudo geral de seqüências recorrentes e aproximações numéricas, incorporando o que atualmente leva o nome de P.A. e P.G. Trigonometria é outro tópico que ocupa indevidamente uma grande parte dos programas, muitas vezes incluindo tratamento numérico de resolução de triângulos, hoje superado pela facilidade de cálculos com a utilização de calculadoras eletrônicas. O ensino de logaritmos também não se modernizou e continua sendo feito num espírito arcaico, quando não tem mais a importância que teve por vários séculos, de instrumento de cálculo numérico.
É preciso mudar a ênfase no ensino do logaritmo, adequando-o às necessidades de hoje. 0 logaritmo decimal, tão importante no antigo cálculo numérico manual, perdeu muito desse papel. Muito importante a ensinar hoje em dia é a função logaritmo natural e sua inversa, a exponencial ex, a função mais importante da Matemática, que ocorre na descrição de uma variedade de fenômenos, como o crescimento de uma cultura de bactérias, de uma população, de juros compostos, do decaimento radiativo, etc. (Veja, por exemplo, nosso livro Cálculo 1, Seções 4.10, 4.11 e 5.6.) Ao leitor interessado numa apresentação do logaritmo para o professor do 2.° grau, recomendamos o livro Logaritmos, do Prof. Elon Lages Lima, publicado pela Sociedade Brasileira de Matemática.
Os problemas relacionados com o ensino de funções merecem considerações numa seção à parte. O que a Matemática Moderna fez com o ensino de funções redundou num desenvolvimento excessivamente formal, abstrato e longo desse tópico do programa, ocupando toda a primeira série do 2.° grau, e afastado das aplicações que podem se constituir em boa motivação. Atualmente gasta-se muito tempo explicando as operações de união, interseção e produto cartesiano de conjuntos, para se chegar à definição de função como um caso particular de relação. Isto nada tem de motivador para o aluno e é irrelevante nos exemplos de funções que são discutidos nesse estágio do aprendizado, todos eles dados por fórmulas simples. Para bem entendermos o contra-senso do ensino atualmente praticado na escola do 2.° grau nesse domínio da Matemática,
E se aí chegaram, foi porque tiveram necessidade desse conceito geral para resolverem delicadas questões surgidas no trato de importantes problemas de convergência. Mais especificamente, os problemas tratados levavam à consideração de séries infinitas de funções, sobretudo as séries trigonométricas. (Isso está explicado em nosso livro Introdução à Análise Matemática, publicado pela Editora Edgard Blücher. Veja as "Notas Complementares" no fim dos capítulos, sobretudo as pp. 104 a 107.) Ora, se essas sutilezas da Análise estão fora do alcance do aluno do 2° grau, por que perturbá-lo com uma idéia tão geral e abstraía de função, num momento em que ele está tão despreparado para apreciar sua importância? As coisas devem vir a seu devido tempo. Do mesmo modo que na evolução das idéias, também no ensino os conceitos só devem ser introduzidos à medida que vão sendo solicitados no desenvolvimento dos tópicos ensinados, à medida que o aluno esteja em condições de apreciar criticamente a importância do que está aprendendo. Ao contrário, o que vemos no ensino de funções é a introdução de diversos conceitos novos, como função injetiva, sobrejetiva, inversa, composta, etc, sem utilização adequada desses conceitos, e, portanto, sem revelar sua real importância. O resultado é negativo, pois, ao invés de estimular os alunos, produz neles o efeito contrário de gerar desinteresse pela Matemática.
Concluímos reafirmando nossa crença na viabilidade de várias mudanças no ensino da Matemática. Isso passaria por um verdadeiro "enxugamento" dos atuais programas, com a conseqüente abertura de espaço bastante para acomodar o ensino de elementos de Cálculo, tão enriquecedor no estudo das funções e muito relevante como auxiliar no ensino da Física. (Já falamos sobre isso na RPM 18. Veja também os artigos do Professor Duelos e da Professora Gravina na RPM 20.)
|