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Dedicado a José Tola Pasquel Foi em 1957, quando comecei o quarto e penúltimo ano do secundário, que chegou ao nosso colégio o professor Juan Herrera. Vinha transferido de outra unidade para ocupar uma posição em tempo integral. A grande maioria de mestres ainda era horista. O professor Herrera persuadiu os alunos de Geometria Plana a manterem em dia uma caderneta de bolso contendo todos os teoremas do curso, demonstrados e ilustrados em cores. Esta devia ser levada permanentemente no bolso e ser lida e relida, não só nas horas de estudo normal, mas, também, nas horas mortas: nas filas, nas viagens de ônibus e bondes, etc. 0 porte da preciosa caderneta poderia ser verificada pelo professor Herrera nos encontros esporádicos com ele, dentro e fora do Colégio. Em aula, a sua atualização, junto com o conhecimento da matéria, era controlada em um ritual de periodicidade incerta. Esta caderneta foi meu primeiro trabalho de compilação em Matemática. Diferia de meus garranchudos cadernos pelo esmero e atenção que lhe devotei. O professor Herrera imprimiu ao curso um dinamismo e um charme sensacionais. Os gregos Euclides, Thales, Arquimedes, entre outros, desfilaram como numa peça de teatro. Conseguiu transmitir a mensagem de que a Matemática podia servir de contato com a história do pensamento humano e com o rigor dedutivo do raciocínio. A Geometria capturou minha atenção e, pela primeira vez, estudei um curso de Matemática por interesse e vontade de aprender. Até essa data só concebia que os cursos desta especialidade deviam ser estudados por obrigação, até o ponto de adquirir suficiente destreza em artifícios técnicos e velocidade nos cálculos, visando apenas conseguir a almejada aprovação.
Minha experiência tentando adquirir essa técnica nos cursos de Aritmética (em 1954) e Álgebra I (em 1955) havia sido traumática. No curso de Aritmética, o engenheiro Robledo passou boa parte do tempo demonstrando, em vertiginosa corrida contra si próprio, os critérios de divisibilidade por 3, por 5, etc. e extraindo longas raízes quadradas e cúbicas, além de maçantes percentagens e juros compostos. Definitivamente, aos 12 anos de idade, longe estava eu de estar preparado para apreciar ou entender a prova de um teorema sobre divisibilidade. Defendi-me como pude com os métodos de cálculo. Acredito que o engenheiro Robledo se sentia culpado pelo curso que dava. Aprovava os que sabiam e também os outros. Comecei o curso de Álgebra desprovido da maturidade necessária e sem nenhuma motivação. 0 professor Huertas era rouco e fechadão; suas aulas eram soporíferas. Mas, ao contrário do engenheiro Robledo, ele não sentia o menor remorso por causa disto. Reprovava mesmo. Lá pelo meio do curso, a julgar pelas minhas notas mensais, minha mãe percebeu que eu iria fracassar se algo não fosse feito de imediato. Convocou o professor Flores, que dava aulas particulares a outros garotos da vizinhança. Na primeira aula ele colocou num papel, com uma clareza meridiana e uma caligrafia belíssima, "as regras básicas das operações com expressões algébricas". Depois deu-me um livrinho de exercícios graduados para que eu fizesse os que pudesse. Enquanto isso, ele trabalhava com outro aluno, pois os pegava aos pares, de níveis não necessariamente iguais. No final da aula ele falou para minha mãe com um tom de sentença: "Não se preocupe, minha senhora, se estudar o rapaz aprenderá". Nessa noite minha mãe chorou de felicidade; agradeceu fervorosamente a Santa Rosa de Lima e Frei Martin de Porres (depois promovido a Santo) por não terem permitido que ela gerasse um filho destinado ao fracasso em Matemática e, portanto, um desvalido na vida.
De fato, ela queria que eu fizesse o exame vestibular para o Colégio Militar "Leoncio Prado", imortalizado nas letras universais por Vargas Llosa em La Ciudad y los Perros. O momento era esse: pegavam os garotos do segundo para o terceiro ano do secundário. Era necessário ter notas boas para ser aceito para prestar, o exame. Era a porta de entrada natural à Academia Militar, para uma profissão estável e bem paga e, para alguém sem padrinhos fardados, uma nota baixa seria fatal. Este era um negócio muitíssimo sério. Com poucas aulas do professor Flores consegui equilibrar-me nas notas de Álgebra; ainda assim corria o perigo de ser reprovado por falta de média. Meu pequeno mundo, porém, reservava-me oportunidades de atalhos inesperados. O professor Huertas lançava a cada ano e por preço módico, como produção independente, uma apostila impressa em mimeógrafo com numerosos exercícios e generosos espaços em branco. Os que quisessem melhorar a média deviam adquirir esta apostila e apresentá-la preenchida com as soluções ... Passei em Álgebra. Mas, oh zebra! Fui reprovado em Zoologia. Na prova oral final, confundi os "platelmintes" com os "nematelmintes". O vexame de ter que ir para a segunda época misturou-se, assim, à felicidade de ficar eliminado da inscrição no concurso de admissão ao Colégio Militar e, sobretudo, salvo de chamuscar-me num iminente "batismo de fogo". Minha mãe se resignou com uma rapidez que surpreendeu. "Será a vontade dos santos", falou. A experiência com as expressões algébricas e o domínio das regras de operação entre elas, adquiridos com o professor Flores, me serviram para navegar, sem aplausos nem vaias, na Álgebra II (sistemas de duas e três equações lineares, equações quadráticas, alguns gráficos de funções algébricas no plano coordenado ...) que cursei no ano de 1956. No último ano do secundário, em 1958, havia eu sucumbido à propaganda subliminar oficial: "os técnicos e os cientistas tirarão nosso país do subdesenvolvimento", dizia-se. Estava, asssim, empolgado para seguir alguma carreira técnica ou científica. Não me sentia com competência suficiente, entretanto, para disputar uma das cobiçadas vagas da Escola de Engenharia. As provas de Matemática e Física dos seus vestibulares tinham a fama de serem longas e difíceis. Conhecia, na minha turma do Colégio e no meu bairro, rapazes que iriam candidatar-se; eles, espertos e velozes, deixariam o "papa-léguas" de língua de fora numa disputa na resolução de problemas. Decidi candidatar-me a Medicina.
A partir do segundo semestre desse ano, comecei a freqüentar um cursinho pré-vestibular na área de ciências em geral. Parte deste cursinho consistia numa revisão aprimorada de todo o programa de Matemática do secundário. Com uma voz fanhosa, mas com clareza e elegância ímpares, o professor Almeza explicou os pontos centrais dos programas de Aritmética e Álgebra. Subitamente entendi as demonstrações dos teoremas de divisibilidade. O trauma que trazia do tempo do engenheiro Robledo se dissipou, como por encanto. Como que atingido por um raio de luz, tive a impressão de vislumbrar uma unidade secreta existente entre a Aritmética, a Álgebra e a Geometria (minha base de apoio). Decidi estudar Matemática. Nesta decisão, ajudou-me bastante uma série de palestras e atividades pré-vocacionais organizadas no meu colégio para os alunos do último ano. É claro que ninguém falou das maravilhas da Matemática. Apresentaram um filme sobre a profissão do médico. Aparecia, entre outras coisas, a cirurgia de um enorme tumor de câncer no pulmão, ocasionado pelo tabagismo. Durante várias noites tive pesadelos horríveis nos quais eu manipulava, sem descanso, vísceras pretas de alcatrão de onde jorrava um sangue purulento que me sujava todo, ensopando meu alvo avental. Com a decisão de estudar Matemática afugentaram-se os pesadelos cirúrgicos - depois de parar de fumar. 0 lugar certo para executar o quixotesco projeto de estudar Matemática, soube no próprio cursinho, não era a Escola de Engenharia mas sim a de Ciências Físicas e Matemáticas da Universidade de São Marcos. Fiquei feliz ao ver-me livre da concorrência dos craques na solução de problemas cabeludos que postulavam a Engenharia. 0 cursinho terminou em dezembro. Varei noites em janeiro e fevereiro, preparando-me para o vestibular. 0 programa era de extensão formidável: Matemática, Ciências Biológicas (Zoologia incluída!), Física e Química. Durante várias tardes de março de 1959, compareci ao multicentenário prédio do Parque Universitário, hoje convertido em museu, as provas do vestibular. Como um poderoso talismã, irradiando coragem e segurança, palpitava no meu bolso a Caderneta de Geometria. No dia 25 daquele mês, voltei ao campus para saber o resultado. Tinha sido admitido! Voltei para casa emocionado com a notícia. "Os santos não se esqueceram do seu aniversário, filho", falou minha mãe, abraçando-me.
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