A independência do axioma das paralelas e as Geometrias não-euclidianas
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Não é fácil escolher um tema para a aula inaugural dos cursos de graduação de um Instituto de Matemática. Sem dúvida que o expositor terá que levar em conta, de um lado a formação dos estudantes e, de outro, sua real motivação para o curso escolhido. Um assunto sempre fascinante é, indubitavelmente, a Geometria; e, nela, um pouco da história e das questões básicas das geometrias euclidiana e não-euclidianas representam um tópico que sempre empolgará o jovem pesquisador. Isso ocorreu na antiguidade, ocorre até hoje e espero que passa ocorrer nesta rápida exposição que farei sobre uma questão que permaneceu aberta por mais de 20 séculos: a independência do axioma das paralelas.
De uma forma simplista muitos consideram a Matemática englobando essencialmente a Geometria, a Álgebra e a Análise. A Geometria é provavelmente a mais antiga das três áreas e surgiu, sem dúvida, da necessidade dos povos de medir terras, construir moradias, templos, monumentos, etc. No inicio, pelo que se sabe, a Geometria era simplesmente uma coleção de conhecimentos práticos, como por exemplo, fórmula aproximada da área A do círculo diâmetro d,
conhecida dos egípcios desde o ano 1500 antes de Cristo. Comparando-se com expressão correta d2 /4 verifica-se que essencialmente, a fórmula aproximada corresponde a adotar para p um valor da ordem de 3,16. Os gregos realmente dispuseram-se a organizar a Geometria como uma ciência e trataram de ordenar os fatos geométricos procurando demonstrar certas proposições a partir de outras mais simples; culminaram nos anos 300 antes de Cristo com a publicação dos “Elementos” de Euclides Trata-se da primeira exposição dedutiva da Geometria Elementar de que se tem notícia, partindo de certos postulados ou axiomas que eram proposições simples representando uma certa evidência natural. Sobre os “Elementos”, disse Einstein, numa certa ocasião: “Quem não soube entusiasmar-se por este livro em sua juventude, não nasceu para pesquisador teórico”. Apesar das demonstrações de Euclides estarem cheias de apelos à intuição, utilizando postulados admitidos tacitamente, não se pode negar que seu trabalho constituiu-se, durante muitos séculos, em um modelo de apresentação matemática, com forte influência na cultura do ocidente- Ainda entre os gregos, Arquimedes descobriu um processo para o cálculo de p e Apolonius estudou detalhadamente as intersecções de um plano com um cone (secções cônicas). Na Renascença, Kepler e Cavalieri calcularam alguns volumes, mas, é com R. Descartes, em 1637, que se obtém um novo e grande impulso, após a criação da Geometria Analítica, que passou a utilizar a Álgebra para resolver problemas geométricos. Com a criação do Cálculo Diferencial e Integral e sua aplicação no estudo das curvas e superfícies, teve origem a Geometria Diferencial, que se tornou pouco a pouco um dos mais importantes ramos da Geometria, abordando questões relevantes cuja investigação se estende até aos dias atuais. Ao mesmo tempo que se desenvolvia a Geometria Diferencial, nascia a Geometria Projetiva que se ocupa fundamentalmente do estudo de propriedades geométricas que se conservam quando submetidas a certas projeções. No caso bidimensional seu universo é o plano projetivo obtido completando-se o plano euclidiano com os pontos no infinito, isto é, com as classes de equivalência de retas paralelas. Quando se estuda a Geometria Projetiva através de axiomas, fica patente que a Geometria Euclidiana, assim como as denominadas Não-Euclidianas. são casos especiais daquela Geometria. A Geometria Algébrica surge como uma extensão do estudo da Geometria Projetiva por via analítica a certos espaços projetivos complexos de duas e mais dimensões. A consideração de famílias de curvas definidas por equações diferenciais ou, mais geralmente, por campos de vetores em superfícies de dimensão dois ou maior, foi um novo campo de estudos iniciado por H. Poincaré e que neste século deu origem às aplicações da Topologia à Geometria surgindo posteriormente belíssimos ensaios geométricos que levaram à Teoria de Morse, à Geometria Diferencial Global, à Topologia Diferencial, à Teoria dos Grupos de Lie, à Teoria dos Sistemas Dinâmicos, etc, em que o Brasil aparece hoje com um significativo número de excelentes especialistas e alguns centros de renome nacional e mesmo internacional.
Voltando aos “Elementos” de Euclides, cumpre assinalar que, como conseqüência da tentativa, durante séculos, da demonstração do seu 5º postulado, surgiram as Geometrias Não-Euclidianas O enunciado do 5º postulado é o seguinte: “Se num plano uma reta r corta duas outras s e t fazendo com elas ângulos internos que do mesmo lado somam menos do que dois retos, então as retas s e t encontram-se necessariamente nesse mesmo lado.” Esse postulado é equivalente a outro, conhecido como o “Axioma das Paralelas” que afirma que “por um ponto fora de uma reta passa uma única paralela a essa reta”, entendendo-se por paralelas duas retas de um plano que não se encontram. Do axioma das paralelas deduz-se que soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois retos. Como o 5º postulado e o axioma das paralelas não são muito evidentes por si mesmos, tentou-se durante séculos uma demonstração para um deles através de raciocínios lógicos tirados dos demais postulados.
Uma importante contribuição sobre o assunto é da autoria do jesuíta italiano G. Saccheri que, em 1733, tomou um quadrângulo no qual dois lados apostos AB e CD são iguais e perpendiculares ao lado BC. a) os ângulos em A e D são obtusos; b) esses ângulos são tetos; c) esses ângulos são agudos. O trabalho de Saccheri permaneceu pouco conhecido mas vários outros matemáticos obtiveram resultados com ele relacionados, especialmente Legendre. Lambert, D’Alembert e Laplace. Ambos, Saccheri e Legendre rejeitaram a hipótese dos ângulos obtusos porque ela conduzia a absurdos quando se supunha que as retas tivessem comprimentos infinitos; eles também tinham objeções á hipótese dos ângulos agudos e daí concluírem que o axioma das paralelas era verdadeiro. Legendre provou também que o 5º postulado é equivalente à soma dos ângulos de um triângulo ser igual a 2 retos.
Gauss parece ter sido o primeiro a acreditar na independência do Axioma das Paralelas, uma vez que ele aceitou a possibilidade lógica de uma Geometria em que fosse válida a hipótese dos ângulos agudos, a qual denominou Geometria Não-Euclidiana, e cujos resultados possuía certamente antes do 1816. Por prudência, como escreveu a Bessel, receando “os clamores dos beócios”, Gauss não se dispôs a publicar tais resultados. O primeiro, entretanto, a estabelecer de público (1826) que se podia construir urna geometria independentemente do axioma das paralelas foi N. I. Lobatchewski, cujo primeiro trabalho sobre o assunto foi publicado em 1829. Independentemente, mas em 1832, o húngaro John Bolyai publicou trabalho análogo. Ambos utilizaram-se da hipótese dos ângulos agudos e nessa Geometria, assim como na de Euclides as retas têm comprimento infinito. Se postularmos que as retas são fechadas e têm comprimento finito, poderemos construir uma Geometria baseada na hipótese dos ângulos obtusos; esta última construção foi imaginada por B. Riemann em 1854, dentro de um contexto muito mais amplo que hoje se denomina a Geometria Riemanniana. Sob a hipótese dos ângulos obtusos, todas as retas passando por um ponto P fora de uma reta r de um plano cortam a reta r. Então todas as hipóteses de Saccheri puderam ser Introduzidas como as bases de possíveis Geometrias, Euclidiana e Não-Euclidianas. Apesar da autoridade de Riemann muita gente imaginava que contradições ainda seriam encontradas nessas Geometrias Não- Euclidianas, até que o matemático italiano E. Beltrami em 1868 mostrou que em determinadas superfícies, chamadas de curvatura constante negativa, as curvas chamadas geodésicas podiam ser interpretadas como “retas” e obteve uma Geometria para a qual vale a hipótese dos ângulos agudos. Hoje se sabe que nas superfícies chamadas de curvatura constante positiva as curvas geodésicas são as “retas” de uma Geometria Não-Euclidiana, para a qual vale a hipótese do ângulo obtuso. Por exemplo, uma tal Geometria pode ser imaginada na esfera tomando as “retas” como os círculos máximos desde que se identifiquem dois pontos diametralmente opostos. Na Geometria de Lobatchewski-Bolyai a soma dos ângulos de um triângulo é inferior a 2 retos; a diferença entre 2 retos e essa soma chama-se deficiência. Além disso, dois triângulos que têm a mesma deficiência têm áreas iguais e reciprocamente. Na Geometria de Riemann, para a qual vale a hipótese dos ângulos obtusos, a soma dos ângulos de um triângulo é superior a 2 retos e se esse excesso é o mesmo para dois triângulos eles têm áreas iguais, e reciprocamente. Num sistema ortogonal de coordenadas (x, y), chama-se semi-plano de Poincaré, o semi-plano y >0. Se considerarmos como ‘retas” as semi-circunferências de centro no eixo dos x e as semi-retas verticais x = cte obteremos um modelo para a Geometria de Lobatchewski-Bolyai em que os ângulos medem-se como na Geometria Euclidiana usual enquanto que a distância entre dois pontos e a congruência são totalmente diferentes das usuais. E fácil ver que por dois pontos
passa uma única “reta” e que dado um ponto P
e uma direção por P, existe uma única “reta” passando
por P e tangente àquela direção. Com o conceito de distância
apropriado, as retas têm comprimento infinito. Verifica-se facilmente que
por um ponto fora de uma “reta” passam infinitas paralelas a essa
“reta” e que vale a hipótese dos ângulos agudos para um conveniente
quadrângulo. Observação
Final: O assunto
desenvolvido no item 4 não deverá, evidentemente, ser objeto de
consideração para o ensino de 2º grau e mesmo de 3º grau. Tratamos, tão
somente, como já observamos, de chamar a atenção, ainda que de forma
superficial, para uma belíssima questão que permaneceu sem resposta por
mais de 2000 anos, O leitor encontrará referências para eventuais
estudos consultando, por exemplo, a obra de M. Amoroso Costa: “As idéias
fundamentais da Matemática e outros ensaios”, Editora da Universidade
de São Paulo, 1971. Os
cincos números mais importantes de Matemática Eles
são 0, 1, e, ,
i. É notável que esses números estejam relacionados pela belíssima
equação fruto da imaginação genial do matemático suíço
Leonard Euler. * N. da R.: Este trabalho do texto de uma conferência
proferida, em Presidente Prudente, SP, pelo então Reitor da USP, por
ocasião da aula inaugural do curso de Matemática, em 1981 Sua
leitura requer, em alguns trechos, nível de treinamento
superior ao da média dos nossos leitores. Embora admitindo isto,
publicamo-lo porque
ele aborda um assunto de grande interesse para os professores de Matemática,
a saber a questão da Geometria Não-Euclidiana. |