A distribuição dos números primos

Geraldo Ávila
IMECC/UNICAMP

 

     Introdução

O conceito de número primo surge naturalmente, tão logo começamos a lidar com a multiplicação, bem no início do estudo da Aritmética. Percebemos então que alguns números são produtos de outros, como 6 = 2 x 3 ou 30 = 5 x 6. Estes são chamados números compostos. Os demais números são aqueles que não têm outros fatores além deles mesmos e da unidade; são os chamados números primos. Em outras palavras,

número primo é todo número, maior do que 1, que é divisível somente por si mesmo e pela. unidade.

Quando um número não é primo, ele pode ser decomposto num produto de fatores primos, como

12 = 2 x 2 x 3,        30 = 2 x 3 x 5,        935 = 5 x 11 x 17.

Pelo seu caráter basilar no estudo dos números, essa propriedade é conhecida como o Teorema Fundamental da Aritmética. Ela significa que os números primos são, por assim dizer, os "átomos" ou "tijolos" da construção numérica pela multiplicação. Parece até que eles preexistem à especulação humana, "já estavam lá", foram apenas "descobertos" e não "inventados".

Por causa mesmo desse caráter do números primos, eles tem sido imaginados como a base do código que teria mais chance de ser entendido por eventuais seres inteligentes de putros mundos. De fato se eu me aproximar de qualquer pessoa que tenha alguma orientação matemática, por modesta que seja, em qualquer lugar do mundo, e lhe mostrar um padel com os números 2, 3, 5, 7, 11, . . ., gravados de maneira universalmente compreensível - por exemplo, com pontinhos, assim:

. .,    . . .,    . . . . . ,    . . . . . . . .,   . . . . . . . . . . .,    etc.
 

     A infinidade dos números primos

A consideração dos números primos suscita uma série de questões interessantes, algumas já tratadas nesta Revista (veja o artigo de Benedito Freire na RPM 11, pp. 5 a 8). Uma delas refere-se à quantidade de números primos existentes. Exibimos acima os números primos de 2 a 13. Mas a seqüência de números primos continua. Até onde? Ou não termina nunca? Esta questão foi resolvida há pelo menos 2 300 anos, pois sua solução consta do livro Elementos de Euclides, escrito por volta de 300 a.C. Lá está a demonstração de que existem infinitos números primos. É a Proposição 20 do Livro 9, reproduzida no artigo de Benedito Freire. (Veja também, nesta RPM, p. 27.) O matemático inglês George Hardy (1877-1947) considerava essa demonstração uma das mais belas da Matemática.

 

     Tabela de números primos

Outra questão natural sobre os números primos é a de determinar, dentre os inteiros positivos, todos os números primos até certo número dado. Esta questão também foi resolvida na antiguidade pelo sábio Eratóstenes (276-194 a.C.) da escola de Alexandria. A ele devemos o chamado crivo de Eratóstenes, ensinado em nossas escolas do primeiro grau, que também está explicado no artigo de Benedito Freire.

Com o crivo de Eratóstenes podem-se determinar, sem auxílio de máquinas, todos os números primos até 200, 400 ou 500, por exemplo. Com o auxílio de computadores, o crivo de Eratóstenes, convenientemente adaptado, permite determinar os números primos até limites bem altos. Mesmo antes dos computadores, já haviam sido determinados os números primos até 10000000. Isto ocorreu por volta de 1914, por obra do matemático americano D. N. Lehmer. Dois outros matemáticos (Bays e Hudson) calcularam, em 1976, (usando computadores, evidentemente!), a tabela dos números primos até 12 x 1011. Além disso, há tabelas de números primos em determinados intervalos de inteiros e conhecem-se também números primos bem grandes, como o número 244497 1, que possui 13395 algarismos! E um número tão grande de algarismos que, se fôssemos escrever todos eles aqui, necessitaríamos de mais de 4 páginas desta Revista (contando 70 algarismos por linha e 45 linhas por página). Listamos a seguir a modesta tabela dos primeiros 100 números primos:

2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23, 29, 31, 37, 41, 43, 47, 53, 59, 61, 67, 71, 73, 79, 83, 89, 97, 101, 103, 107, 109, 113, 127, 131, 137, 139, 149, 151, 157, 163, 167, 173, 179, 181, 191, 193, 197, 199, 211, 223, 227, 229, 233, 239, 241, 251, 257, 263, 269, 271, 277, 281, 283, 293, 307, 311, 313, 317, 331, 337, 347, 349, 353, 359, 367, 373, 379, 383, 389, 397, 401, 409, 419, 421, 431, 433, 439, 443, 449, 457, 461, 463, 467, 479, 487, 491, 499, 503, 509, 521, 523, 541.

 

       A distribuição dos números primos

Ao contemplar uma tabela como essa, a primeira impressão que se tem é a de que não há nenhuma ordem entre os números primos: às vezes eles aparecem próximos uns dos outros, às vezes afastados, ora menos, ora mais afastados; enfim, analisando-os individualmente ou em pequenos grupos, não divisamos qualquer regularidade em sua distribuição. Entretanto, a sagacidade de inteligências privilegiadas consegue ver mais fundo, e foi precisamente isso o que aconteceu por obra do matemático francês Adrien-Marie Legendre (1752-1833). Ele se ocupou dessa questão e por volta de 1800 formulou uma conjectura que revela certa ordem no que parecia ser um caos completo.

Para explicarmos a conjectura de Legendre, introduzimos o símbolo (x) como sendo o número de números primos até certo valor x. Assim, (8) = 4, ou seja, o número de números primos até 8 é 4;   (l 1) = 5,   pois há cinco números primos até 11, precisamente, 2, 3, 5, 7, 11; e assim por diante. Pois bem, o que Legendre conjecturou, empiricamente, analisando tabelas de números primos (em 1797 uma dessas tabelas foi publicada, contendo todos os números primos até 400031), é que (x) podia ser aproximado pela função x / log x (o logaritmo que aqui aparece é o logaritmo naural, isto é, na base e 2,7), e que essa aproximação seria tanto melhor quanto maior fosse x. Mas isto deve ser entendido em termos relativos, isto é, o erro que se comete tomando x / log x em lugar de (x) torna-se tanto menor quanto maior for x, relativamente a x / log x.   Em outras palavras, seja

o erro que se comete ao tomar x / logx em lugar.de (x). Pois bem, o que se torna pequeno com o crescer de x é o erro relativo

Este erro pode ser feito, em valor absoluto, tão pequeno quanto quisermos, desde que façamos suficientemente grande.

Carl Friedrich Gauss (1777-1855), que é considerado por muitos o maior matemático de todos os tempos, conta, numa carta de 1849, publicada vários anos mais tarde, que quando ainda bem jovem, com apenas 15 anos de idade, pensou muito sobre a distribuição dos números primos, chegando a conjecturar algo equivalente ao que conjecturou Legendre.

Seja como for, essa conjectura logo impressionou os matemáticos como algo notável, pois quem diria que a seqüência dos números primos pudesse ter algo a ver com a função logaritmo! Esta é uma função que surge, por exemplo, no estudo do crescimento de populações. Assim, se uma população de bactérias duplica a cada uma hora, então log x / log 2 é precisamente o número de horas necessário para que a população original fique multiplicada pelo fator x.

Vale a pena determo-nos um instante nesta questão. Se P(t) designa o número de indivíduos da população no instante  t  e  P0 o número de indivíduos da população original, sabe-se que

P(t) = Po ekt,                                                          (3)

onde í é o tempo expresso em horas e k é um parâmetro a determinar. Pondo x = P(t)/P0 em (3), teremos x = ekt; e como a população duplica a cada hora, x = 2 quando t = l. Substituindo estes valores na última igualdade, obtemos

2 = ek ,     donde    k = log2 0,693147.

(Atenção, trata-se aqui do logaritmo natural.) Finalmente, levando este valor de  k  em (3) e lembrando que   x = P(t)/P0 obtemos

x = e(log 2) t,     que equivale a   t=  log x / log 2.

Não deixa de ser surpreendente que dois fenômenos tão diferentes na aparência, como a distribuição dos números primos e o crescimento populacional, tenham algo em comum.

A descoberta de Legendre e Gauss demorou a ser demonstrada. Embora ela tenha sido objeto da atenção dos melhores matemáticos do século, desafiou a argúcia desses homens por cerca de 100 anos. De fato, foi somente em 1896 que ela foi demonstrada pela primeira vez. E nesse mesmo ano apareceram duas demonstrações, uma pelo matemático francês Jacques Hadamard (1865-1963) e outra, pelo belga Charles de Ia Vallée Poussin (1866-1962). Essas demonstrações, independentes uma da outra, baseavam-se nas idéias de um outro grande matemático do século, Bernhard Riemann (1826-1866). Embora não tenha logrado demonstrar a conjectura de Legendre e Gauss, Riemann, num memorável trabalho intitulado Sobre o número de números primos menores que um certo número, deixou idéias notáveis sobre teoria dos números, que vêm sendo exploradas pelos estudiosos do assunto até os dias de hoje.

Antes mesmo das demonstrações de Hadamard e de la Vallée Poussin, o matemático russo Pafnutii Chebyshev (1821-1894) provou, por volta de 1850, um resultado próximo à conjectura de Legendre e Gauss. Segundo Chebyshev, existem constantes positivas e  C (c 0,92, C 1,106)  tais que

Para bem entendermos o significado da aproximação

vamos comparar os gráficos das funções y = x e y = log x. Eles nos revelam que ambas as funções crescem com o crescer de x, tendendo a infinito. No entanto, como podemos ver, claramente, a primeira dessas funções cresce mais depressa que a segunda, distanciando-se mais e mais desta última, à medida que x cresce acima de qualquer número dado. Isto fica mais claro ainda quando levamos em conta que o gráfico do logaritmo tem a concavidade voltada para baixo, significando que, embora esta função esteja crescendo sempre com o crescer de x, trata-se de um crescimento cada vez mais lento, quanto maior for x. Isto quer dizer que o quociente no segundo membro de (4) também cresce, tendendo a infinito com o crescer de x, o que está de acordo com o fato de que existem infinitos números primos, isto é, (x) cresce acima de qualquer número, desde que façamos x suficientemente grande. Não obstante tudo isso, o erro absoluto expresso em (1) pode tornar-se muito grande, mas não o erro relativo expresso em (2); este tende a zero, isto é, pode ser feito menor do que qualquer número positivo dado, desde que façamos x suficientemente grande.

Uma conclusão simples que podemos tirar de (4) é que, em certo sentido, os números primos vão ficando cada vez mais raros, à medida que avançamos na seqüência dos números naturais. Para bem entender o que estamos dizendo, observe que x/ log x significa

de sorte que 1/logx é a densidade média dos números primos no intervalo que vai de 1 até x. O fato de que essa densidade decresce com o crescer de x significa precisamente o que dissemos acima:

os números primos vão ficando cada vez mais raros, à medida que avançamos na seqüência dos números naturais.

 

     Desertos de números primos e primos gêmeos

 Evidentemente, o que acabamos de dizer deve ser entendido em média. Isto deixa aberta a possibilidade de haver concentrações de números primos em certos lugares ou a ausência deles em outros lugares de sua seqüência. Essa ausência pode ser facilmente estabelecida, pelo simples expediente de exibir intervalos arbitrariamente longos de números naturais nos quais todos os números são compostos, nenhum é primo! Tais intervalos são às vezes chamados desertos de números primos. Para exibi-los, comecemos por observar que, dado qualquer número natural n, seu fatorial é divisível por todos os números

2, 3, ..., n 1, n

pois é simplesmente o produto desses números. Então,

n! + 2   é divisível por 2,

n + 3   é divisível por 3,

n! + 4  é divisível por 4,

e assim por diante, até chegarmos a

n! + n  é divisível por n.

Em outras palavras, todos os números

n! + 2,  n! + 3,  n! + 4 ,  ... n! + n,

são compostos. Nesse intervalo existem n 1 números. Como n é arbitrário, podemos escolhê-lo de forma a termos uma seqüência ininterrupta de números compostos, ou seja, um deserto de números primos, tão longo quanto quisermos!

Em face da propriedade que acabamos de demonstrar, e tendo em conta que a densidade média dos números primos tende a zero, de sorte que esses números vão ficando, em média, cada vez mais raros quanto maiores forem, é razoável suspeitar que o intervalo entre números primos consecutivos também cresça com o crescer desses números. Mas a verdade parece ser outra, pois há também razões para suspeitar que existam infinitos pares de números primos gémeos, isto é, pares de números primos do tipo p e p + 2. Por exemplo, são primos gêmeos os pares

3 e 5,     5 e 7,     11 e 13,     17 e l9,     29 e 31,     41 e 43,    etc.

O leitor pode examinar a tabela de números primos que reproduzimos acima e nela localizar vários outros desses pares, o último dos quais formado pelos números 461 e 463.

 

     Conclusão

Como dissemos acima, o crivo de Eratóstenes pode ser convenientemente programado em computador para construir tabelas de números primos até limites bem grandes. Há também procedimentos especiais para achar os números primos de determinados intervalos, ou para decidir se um dado número é ou não primo. Isso permite encontrar números primos muito grandes. Multiplicando-se dois tais números, obtém-se um número composto que também será tão grande, a ponto de ser praticamente impossível descobrir seus fatores primos, pois os computadores mais rápidos levariam milhões de anos para realizar essa tarefa! Tais números são hoje em dia usados na codificação de mensagens, seja para fins militares, diplomáticos ou comerciais, um recurso criptográfico muito eficaz, pois só quem conhece os fatores primos do número composto consegue interpretar as mensagens. Trata-se de uma importante descoberta, ocorrida por volta de 1977, objeto de um interessante artigo de Routo Terada na RPM 12.