A Linguagem Lógica

Iole de Freitas Druck
IME - USP

O trabalho com a Lógica durante o curso de Magistério não deve ser um ponto programático localizado em algum momento específico da estrutura curricular, mas sim deve ser uma preocupação metodológica presente sempre que algum ponto do programa permitir ou que o interesse da turma justificar uma exploração mais detalhada.

Trata-se de um tema com amplas conotações interdisciplinares e que se torna mais rico na medida em que for possível perceber o quanto a lógica permeia as conversas informais entre amigos, a leitura de jornais ou revistas e as diversas disciplinas do currículo - não é um instrumento só da Matemática.

O objetivo principal de um certo domínio da lógica é o do desenvolvimento da capacidade de usar e entender um discurso correto, identificando construções falaciosas, ou seja, incorretas, mas com a aparência de correção lógica. Desenvolver no aluno a capacidade de argumentar e compreender argumentos, bem como a capacidade de criticar argumentações ou textos.

Para perseguir este objetivo é menos importante ou motivante um curso de lógica formal ou aristotélica, e mais relevante a discussão de exemplos e contra-exemplos de "afirmações lógicas". Aprende-se mais, talvez, resolvendo uma charada lógica ou percebendo que se pode chegar a uma conclusão falsa através de caminhos aparentemente lógicos do que, por exemplo, simplesmente decorando uma tabela de verdade. Esta última não é uma arbitrariedade decidida por um gênio maluco - é uma necessidade do raciocínio correto que só percebemos no uso concreto, com exemplos significativos. Assim, por exemplo, a resolução do problema "Uma Aventura de Alice", abaixo descrito, pode ser uma motivação interessante para a introdução das tabelas de verdade e ao mesmo tempo ser uma atividade instigante para os alunos:
 

 

    Exercício 1: Uma Aventura de Alice.

Alice, ao entrar na floresta, perdeu a noção dos dias da semana. 0 Leão e o Unicórnio eram duas estranhas criaturas que freqüentavam a floresta. O Leão mentia às segundas, terças e quartas-feiras, e falava a verdade nos outros dias da semana. O Unicórnio mentia às quintas, sextas e sábados, mas falava a verdade nos outros dias da semana.

Problema 1.

Um dia Alice encontrou o Leão e o Unicórnio descansando à sombra de uma árvore. Eles disseram:

Leão: Ontem foi um dos meus dias de mentir.

Unicórnio: Ontem foi um dos meus dias de mentir.

A partir dessas afirmações, Alice descobriu qual era o dia da semana. Qual era?

Problema 2.

Em outra ocasião Alice encontrou o Leão sozinho. Ele fez as seguintes afirmações:

(1)    Eu menti ontem.

(2)    Eu mentirei daqui a 3 dias.
Qual era o dia da semana?

Problema 3.

Em qual dia da semana é possível o Leão fazer as seguintes afirmações?

(1)    Eu menti ontem.

(2)    Eu mentirei amanhã.

Problema 4.

Em que dias da semana é possível o Leão fazer cada uma das seguintes afirmações:

(a)   Eu menti ontem e eu mentirei amanhã.

(b)   Eu menti ontem ou eu mentirei amanhã.

(c)   Se menti ontem, então mentirei de novo amanhã.

(d) Menti ontem se e somente se mentirei amanhã.


Resolução:
 

Dia da semana

2

3

4

5

6

sáb.

dom.

Leão

M

M

M

V

V

V

V

Unicórnio

V

V

V

M

M

M

V

Problema 1:

-    Pela resposta do Leão, pode ser 2 ou 5.

-    Pela resposta do Unicórnio, pode ser 5 ou domingo. Portanto, como os dois se referiam a um mesmo dia da semana, este era quinta-feira.

Problema 2:

-    Por (1), o dia poderia ser 2 ou 5.

-    Por (2), como o Leão mentirá 3 dias depois de hoje, hoje pode ser  2,  3, 4,  6,   sábado, domingo.

Logo, o dia da semana era segunda-feira.

Problema 3:

-    A afirmação (1) pode ser feita 2 ou 5.

-    A afirmação (2) pode ser feita 4* e domingo.

Portanto, não existe um dia na semana em que seja possível o Leão fazer as duas afirmações.

Problema 4:

(a)   Esta afirmação (que é uma conjunção) é uma mentira quando alguma das suas componentes for falsa, logo, como mentira, o Leão pode afirmá-la 2 ou 4.  Por outro lado, ela será verdadeira somente quando suas duas componentes o forem, logo o Leão não poderá afirmá-la em nenhum dia em que fala a verdade.

Resposta: 2
ou 4 (compare este exercício com o Problema 3 e explique por que eles são diferentes).

(b)    Esta afirmação (que é uma disjunção) é mentirosa quando as suas duas componentes forem falsas, logo o Leão não poderá afirmá-la nos dias em que mente. Por outro lado, ela será verdadeira quando pelo menos uma das suas componentes o for, assim o Leão poderá afirmá-la na 5 ou no domingo.

Resposta: 5 ou domingo.

(c)  Esta afirmação (que é uma implicação), composta de duas outras, só é falsa quando, sendo a primeira (premissa) verdadeira, a segunda (conclusão) for falsa. Logo, o Leão poderá afirmá-la mentirosamente somente na 4(na 2 e na 3 a afirmação é verdadeira - convença-se). Pelo mesmo motivo acima o Leão não poderá dizê-la na 5, dia em que fala a verdade. Nos demais dias de verdade ele poderá afirmá-la (6, sábado e domingo), já que, a premissa sendo falsa, a implicação é verdadeira (pense nisso!). Resposta: 4,  6,  sábado ou domingo.

d) Esta afirmação (que é uma equivalência) é verdadeira quando suas duas componentes forem verdadeiras ou quando forem as duas falsas. Assim, ela é uma mentira, dentre os dias em que o Leão mente, somente na 2 ou na 4. Dentre os dias em que ele fala a verdade, ele poderá afirmá-la somente na 6 ou no sábado. Resposta: 2,  4,  6 ou sábado.

(Observação: Veja as tabelas de verdade no final do artigo.)

Existem vários livros ou revistas que contêm problemas do tipo charada lógica". Na bibliografia citamos alguns. Estes problemas podem ser usados aqui ou ali para chamar a atenção de alguns tipos mais comuns de "falha de lógica" num raciocínio, como por exemplo:
 

     Exercício 2.

Leia as seguintes afirmações:

(1)  Se um político tem muito dinheiro, então ele pode ganhar as eleições.

(2)  Se um político não tem muito dinheiro, então ele não pode ganhar as eleições.

(3)  Se um político pode ganhar as eleições, então ele tem muito dinheiro.

(4)  Se um político não pode ganhar as eleições, então ele não tem muito dinheiro.

(5) Um político não pode ganhar as eleições se ele não tem muito dinheiro.

Responda então:

(a) Assumindo que (1) é verdadeiro, quais das outras afirmações são verdadeiras.

(b) Qual é a negação de (1)? E a sua recíproca? E a sua contrapositiva?

(Veja "definições usadas",  no final do artigo.)

(c) Mesmas perguntas para (5).

Resolução:

(a)  Sendo (1) verdadeiro, não se pode saber nada sobre a veracidade de (2), (3) ou (5) (observe que (2) e (5) afirmam a mesma coisa). A única que é verdadeira como decorrência de (1) é a afirmação (4).

(Observação: faça o exercício do final do artigo.)

(b)   As definições dos conceitos aqui empregados estão também no final.

-  A negação de (1) é:   "Um político tem muito dinheiro e não pode ganhar as eleições".

(Exercício:  utilizando as observações do final, verifique que as tabelas de verdade de

-  A recíproca de (1) é (3).

-  A contrapositiva de (1) é (4).

(c)  Sendo (5) verdadeira, (2), que é a mesma afirmação com outra maneira de escrever, também será obrigatoriamente verdadeira. Também (3), que é a contrapositiva de (2), será obrigatoriamente verdadeira.  Nada se pode afirmar sobre a veracidade de (1) ou (4).

-    A negação de (5) é:   "Um político pode ganhar as eleições e não ter muito dinheiro".

-    A recíproca de (5) é (4).

- A contrapositiva de (5) é (3).

Também se pode levar o aluno a compreender mais claramente a diferença entre a estrutura lógica existente num enunciado e o conteúdo propriamente dito deste enunciado através de exercícios do tipo que segue:

 

     Exercício 3.

Decida quais das afirmações são válidas.

(a)  Todos os girassóis são amarelos e alguns pássaros são amarelos, logo nenhum pássaro é um girassol.

(b)   Alguns livros são verdes e algumas coisas verdes são comestíveis. Concluímos que alguns livros são comestíveis.

(c)   Como todos os peixes são mamíferos, todos os mamíferos são aves e existem minerais que são peixes, concluímos que existem minerais que são aves.

(d)  Todos os homens são mortais. O presidente é um homem. Conclusão: 0 presidente é mortal.

(e)  Alguns homens sabem nadar. Não existem peixes que não sabem nadar. Conclusão: Os peixes sabem nadar.

(f)    Alguns santistas são surfistas. Alguns surfistas são loiros. Não existem professores surfistas.

Conclusões:

(1)    Alguns santistas são loiros.

(2)    Alguns professores são santistas.

(3)    Alguns loiros são professores.

(4)    Existem professores loiros.

Resolução:

Neste exercício os diagramas de Venn podem ser utilizados, como segue:

(a)  Algumas configurações possíveis para as premissas do enunciado.

As configurações (2, 3 e 4) obtidas já nos permitem concluir que afirmação não é válida pois existe modelo que torna a premissa verdadeira e a conclusão falsa.   (Estas são as únicas configurações possíveis?)

b) Algumas configurações possíveis para as premissas do enunciado:

A configuração (2) nos permite concluir que a afirmação não é válida pelo mesmo motivo anterior. Encontre mais 3 configurações possíveis.

Todos aqueles minerais que forem peixes, pelo diagrama são necessariamente aves, logo a conclusão é decorrente das premissas e a afirmação é válida, apesar de poder haver outros diagramas cabíveis com a descrição das premissas - por exemplo, algum que não deixe nenhum mineral ser mamífero sem ser peixe. (Esboce um assim.)

Esta afirmação é chamada silogismo.    O mais famoso deles, deixado por Aristóteles, falava de Sócrates, ao invés do presidente. E claramente válido.

(e)    Esta afirmação é válida pois a conclusão é equivalente a uma das
premissas.

(f)      Alguns diagramas possíveis para as premissas do enunciado.

Bastam estes dois diagramas para vermos que nenhuma das quatro conclusões é válida a partir das premissas. Isso não impede que existam configurações em que todas as quatro sejam verdadeiras (faça exemplos de tais configurações onde todas as premissas sejam verdadeiras e as conclusões também). Mas para que uma implicação genérica deste tipo seja válida não é possível que possamos exibir contra-exemplos como os acima. Uma afirmação destas só é válida quando for verdadeira em todos os modelos possíveis nos quais as premissas são verdadeiras.

Outras maneiras de trabalhar a lógica no curso de magistério são através de atividades interdisciplinares, seja com Física, Química. Português, História, Geografia, leitura crítica de textos de jornais ou mesmo de livros-textos das várias disciplinas.

Alguns dos tópicos do próprio currículo de Matemática são mais propícios ao uso de "demonstrações" ou "contra-exemplos" (na sistematização da Geometria notadamente) e, portanto, ao abordarmos estes tópicos, podemos sempre aproveitá-los para salientar a estrutura lógica subjacente em toda a Matemática.

Observações sobre o conteúdo lógico citado no texto:

 

     Tabelas de verdade

Se P, Q são afirmações dadas, sendo que a letra F significa falso 5 a letra V significa verdadeiro, a tabela abaixo diz o valor (F ou V) ias afirmações compostas a partir de P e Q segundo o valor (F ou V) das próprias P ou Q:

 

 

Negação

Conjunção

Disjunção

Implicação

Equivalência

P

Q

P

P A Q

P V Q

P - Q

P-Q

 

 

não P

P e Q

P ou Q

se P então Q

P se e só se Q

 

 

 

 

 

P implica Q

P é equivalente

 

 

 

 

 

 

a Q

V

V

F

V

V

V

V

V

F

F

F

V

F

F

V

V

V

F

V

V

F

V

F

V

F

F

V

V

 

     Definições usadas:

Dada uma afirmação P, chamamos a afirmação

"não P" ou " P"

de negação de P.

Dadas afirmações P e Q, chamamos de implicação à afirmação

"Se P então Q" ou "P implica Q" ou "P Q".

Neste caso, a afirmação

"Se Q então P" ou "Q implica P" ou "Q P"

é a sua recíproca e a afirmação

"Se não Q então não P" ou "não Q implica não P" ou " Q P" é a sua contrapositiva.

 

      Exercício:

Prove que uma implicação é logicamente equivalente à sua contrapositiva usando as tabelas de verdade, ou seja, prove que a afirmação: "(P Q) ( Q P)" possui só V na sua tabela de verdade.

Prove também que uma implicação não é logicamente equivalente à sua recíproca, isto é, a afirmação "(P Q) (Q P)" possui V e F na sua tabela de verdade.

Prove ainda que a negação da negação é equivalente à própria afirmação, ou seja, que a afirmação "  P P" possui só V na sua tabela de verdade.

 

Referências Bibliográficas:

Curiosidades Lógicas:

[1]  Desafios Lógicos. Revista da Editora Morumbi, São Paulo, 1986.

[2] Tahan, Malba.  O Homem que Calculava, Rio de Janeiro, Conquista, 197-1.

Divulgação da Lógica:

[3] Carraher, David W. O senso critico. São Paulo, Editora Pioneira, 1983. [4] Machado, Nilson J. Lógico? É Lógico!. São Paulo, Editora Scipione, 1988.

[5] ----------- —.   Lógica, Conjuntos e Funções.  Vol.l, Coleção Matemática por Assunto. São Paulo, Editora Scipione, 1988.

Lógica Formal:

[6] Hegenberg, Leõnidas. Lógica: O Cálculo de Predicados. São Paulo, Editora Herder, EDUSP, 1973.

[7]---------------- .  Lógica, Lógica e Dedução. São Paulo, EDUSP-EPU, 1975.

[8] Zimbarg Sobrinho, Jacob.   Introdução à Lógica Matemática.   9o Colóquio Brasileiro de Matemática, Poços de Caldas, 1973.

 

 

Iole de Freitas Druck é professora do IME-USP. Sua área de especialização é Lógica Matemática e tem se deixado seduzir cada vez mais pelas questões relativas a Ensino de Matemática no 1° grau. Faz parte da coordenação de projeto de Matemática do projeto RIPEC-CAPES/SPEC-PADCT.