Um problema de Fibonacci

João Pitombeira de Carvalho
PUC - RJ

 

Estamos entre a segunda metade do século XII e a primeira metade do século XIII. 0 ocidente europeu conhece uma grande prosperidade. Novos campos são arados, pântanos são drenados, florestas derrubadas, a fome recua; a população, mais bem alimentada, se multiplica e a teia social se torna cada vez mais complexa. Cidades livres, feiras, comércio mais intenso, com a conseqüente expansão do uso da moeda, modificam o mundo feudal até então letárgico e imóvel.

As cidades italianas, grandes beneficiárias das cruzadas, mantêm frotas orgulhosas que patrulham o Mediterrâneo e o cruzam em comércio intenso e lucrativo.

E a época da construção de Chartres, a rainha das catedrais góticas, o epítome em pedra e luz de toda uma fé. A fermentação cultural se avoluma, mais e mais universidades são instituídas. Os grandes doutores da Igreja, Alberto Magno e Tomás de Aquino, discutem as questões de fé, e o segundo, na Suma Theologica, sistematiza a religião católica, a partir da filosofia de Aristóteles.

É também a época em que Rogério Bacon defende a ciência experimental e em que a utilização da Matemática unida à experimentação começa a interessar os sábios.

Na literatura a vitalidade medieval também explode exuberante. A alvorada começa com as Minnesang, poemas-canções germânicos, se torna mais radiante com a obra prima épica Parsifal, de Wolfgang von Eschenbach, com os "fabliaux", retratos satíricos da sociedade (Le Roman de Renard), e com o surpreendente Roman de la Rose, superação da poesia cortesã. O fecho desta fase gloriosa da literatura ocidental é certamente a Divina Comédia de Dante, concluída em 1321, já no terrível século XIV, em que a cristandade ocidental foi assolada por pragas, guerras, fome, distúrbios e desgraças.

No período esboçado acima, nasceu em Pisa, então próspera cidade mercantil italiana, Leonardo Fibonacci (1170, 1240?), também conhecido como Leonardo Pisano ou Leonardo de Pisa. Seu pai foi importante funcionário de Pisa e representou, durante algum tempo, os interesses comerciais de sua cidade em Bugia, na atual Argélia, norte da África. Devido às viagens do pai, Leonardo percorreu todo o Mediterrâneo, visitando a Espanha muçulmana, a Sicília, o Levante, conhecendo nestes lugares diversas culturas, familiarizando-se com a Matemática árabe, que era então mais desenvolvida do que a Matemática da Europa Ocidental.

Leonardo se identificava como descendente de Bonacci, provavelmente um antepassado não muito distante. Este costume de referir-se a antepassados mais ou menos ilustres era comum na Itália de então. O uso do cognome Fibonacci para Leonardo é recente e deve-se provavelmente ao historiador matemático Guillaume Libri, em 1838.

Fibonacci escreveu vários livros: Líber Abaci (1202,1228), Practica Geometriae (1223), Flos (1225), Epistola, ad Magistrum Theodorum (?), Liber Quadratorum (1225), Di Minor Guisa, hoje perdido, e talvez um livreto sobre o Livro X dos Elementos de Euclides.

Leonardo impressionou-se muito com os algarismos indo-arábicos, achando-os superiores aos métodos então usados na Europa para registrar os números e operar com eles. Foi um dos responsáveis pela divulgação do sistema de numeração decimal na Europa, por meio de seu Liber Abaci escrito em 1202. Neste livro, Fibonacci apresentou um tratamento satisfatório da Aritmética e da Álgebra Elementar. A palavra Abaci usada no título da obra tem um sentido mais geral, de Matemática e de cálculo, ou de Matemática Aplicada, e não o de método de contagem usando ábacos. Por exemplo, os matemáticos toscanos posteriores a Leonardo são chamados maestri d'abaci.

Durante mais de três séculos o Liber Abaci foi usado para ensinar Matemática e cálculos aritméticos. Mas a justa fama de Leonardo não repousa somente sobre este livro. Assim, em 1494, Luca Pacioli, em seu Suma, elogiou o trabalho de Fibonacci e copiou longas passagens e problemas do Liber Quadratorum, a obra mais avançada de Fibonacci, e que trata da Teoria dos Números.

No Líber Abaci, ao lado das preocupações com métodos de cálculo, encontramos raciocínios sobre a validade dos processos e procedimentos apresentados. Embora o objetivo de Leonardo fosse disseminar métodos matemáticos práticos, para o dia-a-dia, ele nunca deixou de ser um matemático, conhecedor da herança grega e árabe, portanto consciente de que a Matemática não é uma coleção de receitas e procedimentos.

Os leitores modernos não acham Liber Abaci interessante. Após uma apresentação inicial dos processos aritméticos, incluindo a extração de raízes quadradas, ele enfatiza problemas de transações comerciais, um dos assuntos mais tratados na época, devido às necessidades decorrentes do surto comercial, dedicando-se particularmente a problemas de conversão entre as inúmeras moedas então existentes.

Embora fosse defensor do sistema de numeração decimal, Fibonacci não percebeu que uma das maiores vantagens deste sistema é a facilidade que ele permite no trabalho com frações. O livro emprega três tipos de frações: ordinárias, sexagesimais e unitárias. Em verdade, no Líber Abaci, os dois piores dos três sistemas citados acima são sistematicamente usados: as frações unitárias e as ordinárias.

Geralmente, cita-se do Líber Abaci o problema dos coelhos:

Um casal de coelhos torna-se produtivo após dois meses de vida e, a partir de então, produz um novo casal a cada mês. Começando com um único casal de coelhos recém-nascidos, quantos casais existirão ao final de um ano?

Este problema deu origem à chamada sucessão de Fibonacci   1, 1,2, 3, 5, 8, 13, ..., formada pela lei recorrente

an = an-1 + an-2,     a0 = 1,     a1 = 1,     n = 2, 3, ...

(veja o problema e a sua solução na RPM 6, pp.12 e 13).

Mas, em verdade, o livro contém muito mais. Entre os problemas nele tratados, a maioria sem grande interesse para nós, leitores de hoje, pois tratam de Aritmética usando os algarismos indo-arábicos ou de Matemática Comercial, encontramos verdadeiras jóias matemáticas, como um relacionado com a maneira egípcia de lidar com frações.

com n1,n2,..., nk naturais distintos. Não discutiremos aqui as interpretações apresentadas pelos eruditos para esta insistência egípcia em trabalhar com frações unitárias. Este hábito, embora pesado e inconveniente, sobreviveu até a Idade Média. Em verdade, os egípcios, por meio de tabelas apropriadas e métodos engenhosos, conseguiam lidar muito bem com as frações unitárias. 0 leitor mais curioso poderá consultar os livros de van der Waerden e de Gillings citados na bibliografia (e para uma leitura leve, a RPM 15, p. 21).


Uma prova da acuidade matemática de Fibonacci é ter percebido a necessidade de mostrar isso. Ele não apresenta uma demonstração formal, como o faríamos hoje, mas dá um método inteiramente geral que resolve o problema

A regra ... é que você divide o número maior pelo menor; e quando a divisão não é exata, verifique entre que dois naturais a divisão está.   Tome a maior parte, subtraia-a, e conserve o resto ....

Em linguagem de hoje, a regra seria:

Subtraia da fração dada a maior fração unitária que não é maior do que ela. Repita este processo até obter 0.





É fácil demonstrar que o processo descrito por Fibonacci sempre funciona.

unitárias distintas.

Mostraremos que o método funciona, demonstrando que os numeradores das diferenças sucessivas decrescem estritamente. Então, como toda sucessão estritamente decrescente de números naturais não negativos é finita, o processo obrigatoriamente tem fim.

Podemos, portanto, supor que r 0. Então

Mas, como  a r < a,  os numeradores das diferenças sucessivas são estritamente decrescentes quando  r 0.

Um problema relacionado com o descrito acima, formulado em 1956 e até hoje não resolvido é o seguinte:

Isso exemplifica a vitalidade da Matemática, em que problemas antigos, já resolvidos, dão origem a novos, numa renovação incessante e frutífera.
 

Bibliografia

[l]  Fibonacci, Leonardo Pisano, The Book oí Squares, traduzido e comentado por L.E.Sigler. Academic Press, New York, 1987.

[2] Gillings, R. J. , Mathematics in the Time of the Pharaohs.   Dover, New York, 1982. [3] Stein, S. K.  Mathematics,   the Man  Ma.de Universe.    W.H.Freeman, San Francisco, 1976.

[4]  Struik, D. J. História Concisa das Matemáticas.  Gradiva, Lisboa, 1989.

[5] van der Waerden, B. L. Science A wakening. Noordhooff, Gronigen, Holanda,  3 edição. e, por sugestão da RPM

[6]  Boyer, C. B. História da Matemática, tradução de Elza F. Gomide. EdgardBlucher, São Paulo, 1974.

 

João Bosco Pitombeira, doutor pela Universidade de Chicago, é professor do Departamento de Matemática da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro , onde coordena o projeto "Matemática, Comunidade e Universidade", patrocinado pelo SPEC/CAPES/MEC/PADCT.

 

Você sabe desenhar?  Você é artista?

Quadros, com os títulos acima, foram publicados na RPM 16, solicitando a colaboração de professores desenhistas ou artistas. Dez leitores ofereceram os seus préstimos e a todos eles a RPM agradece. São estes os "desenhistas em potencial" da RPM: A. Jorge Gouvêa, Brasília, DF; - Celso Henrique Lopes da Silva, Recife, PE; - Elaine Ugolini, Guarulhos, SP; - Ethienni Martins de Lima, São Paulo, SP; -Francisco Erivaldo Moraes de Castro, Fortaleza, CE; - Geraldo Fran­cisco Corrêa Alves de Lima, São João Evangelista, MG; - Gildo A. Montenegro, Recife, PE; - João Kazuwo Ikegami, São Paulo, SP - Ju-randir José Lopes, Bernardino de Campos, SP; - Neiva P. Hein, Porto Alegre, RS.