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Durante o primeiro semestre de 1984 a PUC de São Paulo ofereceu um curso de extensão para professores de Matemática de 1.° e 2.° graus. O que vou contar aconteceu numa das aulas deste curso. Estudávamos as propriedades relativas aos ângulos dos polígonos. Propus o seguinte exercício: "Prolongando-se os lados AB e CD de um polígono regular ABCD... obtém-se um ângulo de 132°. Quantos lados tem o polígono?" Solução Se o polígono é regular, o triângulo BPC é isósceles e 2e + 132° = 180°, donde e = 24° e portanto a = 156°. Lembrando que a soma das medidas dos ângulos internos do polígono de n lados é igual 180°(n 2), resulta que a medida de cada ângulo interno do polígono regular em questão é
Trata-se,
portanto, do polígono regular de 15 lados. Após resolver o exercício, comentei com os colegas professores que, certa vez, numa 1.ª série do 2.° grau, ao resolver este mesmo exercício, um aluno perguntou-me:
Os professores concordaram que o enunciado do exercício permitia as duas interpretações. Devíamos, pois, pensar nos dois casos. 2e + 48° = 180° e = 66° a = 114° Logo
Como o número de lados de um polígono é um número inteiro, concluímos que, neste caso, tal polígono não existe. Portanto, apesar das duas possíveis interpretações, o problema tem uma única solução. Terminada a resolução, um dos colegas dirigiu-se a mim, fazendo uma observação sobre o exercício. Neste momento, teve início um mal-entendido. Ele disse uma coisa e eu entendi outra. Ele observou que, se no enunciado do exercício, o ângulo dado fosse 48°, ao invés de 132°; então o caso 1 seria impossível e o 2 possível.
Entendi que ele estivesse dizendo outra coisa. Achei que houvesse perguntado se haveria algum caso em que as duas situações fossem possíveis. Com outras palavras, pensei que estivesse propondo este problema: existe algum valor para o ângulo dado no enunciado do exercício, de modo que o mesmo tenha duas soluções! Coloquei, então, o problema para a turma toda, propondo que pensássemos nele durante a semana e o discutíssemos na aula seguinte. Mal termino de apresentar esta proposta, um dos professores sugere um modo de resolver o problema. Outros começam a discuti-lo com os colegas. Alguém sugere as figuras seguintes e repete a formulação do problema:
"ABCD... é um polígono regular. Qual é o valor de para o qual os dois casos são possíveis?" Para facilitar o equacionamento do problema, sugeri que usássemos a propriedade relativa à soma dos ângulos externos de um polígono convexo: a soma das medidas dos ângulos
Enquanto isso, o Chico Nery, que ministrava o curso junto comigo e que estava num canto, tentando resolver o problema, observou que, se a = 90°, então os dois casos são possíveis. É fácil concordar com esta afirmação e perceber que, nos dois casos, obtemos um mesmo polígono: o octógono regular. A confusão na sala era grande, porque muitos tentavam resolver o problema sozinhos, sem dar atenção ao que os outros discutiam. Propus que resolvêssemos o sistema de equações nas incógnitas n e .
Este resultado confirmava a observação do Chico Nery e revelava que os dois Dei o problema por encerrado. Ficou um silêncio estranho na classe. Senti que as pessoas não estavam convencidas daquele resultado. Foi quando o Chico Nery falou: — Deve haver algum erro neste raciocínio pois, se = 120°, os dois casos também são possíveis. No 1.°, obtemos o polígono de 12 lados e no 2.° obtemos o hexágono. No meio da confusão percebemos o erro. Voltemos às duas equações:
Se o n
da primeira equação é o mesmo n da segunda equação, isto significa que
estamos exigindo que, nos dois casos possíveis, resulte o mesmo polígono. Isto
não corresponde ao problema proposto. Havíamos resolvido um outro problema, mais
exigente, com mais restrições; tratava-se de um caso particular daquele que
havíamos proposto. Nele, o n de Reeqüacionamos o problema, usando uma notação adequada. Se n1 é o número de lados do polígono do 1.° caso e n2 é o número de lados do polígono do 2.° caso, então:
Temos, então, um sistema de 2 equações e 3 incógnitas. Eliminando resulta:
E agora? Novo impasse.
Ficamos empacados.
confirmando as
duas soluções já conhecidas do problema.
Concluímos que dava em nada.(*) Observando a igualdade anterior, outro colega pensou em soma e produto das raízes da equação do 2.° grau. Entretanto, na hora, ficou quieta. Só disse isso depois. n1 e n2 são inteiros iguais ou maiores do que 3. Como levar isto em consideração? Alguém sugeriu expressar n1 em função de n2:
Neste ponto, lembrei-me de um outro problema cuja resolução levava a uma equação parecida com esta. A igualdade anterior pode ser escrita assim:
Como n1 é inteiro, n2 - 4 deve ser divisor de 16, logo:
Resolvemos fazer uma tabela, organizando os resultados:
Observando a tabela, afirmei que o problema apresentava 3 soluções, visto que n2 = 5 e n1=20 é o mesmo que n2 = 20 e n1 = 5. Uma colega discordou, afirmando que o problema apresentava 5 soluções, porque há 5 valores distintos para a. Concordei e, em seguida, hesitei. Afinal, qual era mesmo o problema proposto? Decidimos enunciá-lo novamente: "Prolongando-se os lados AB e CD de um polígono regular ABCD..., obtém-se um ângulo a. Qual é o valor de a para que este problema admita solução nos dois casos seguintes?"
Concluímos que este problema apresenta 5 soluções. Enfim, depois de muitas confusões, dúvidas, hesitações, erros e acertos, as idéias ficaram claras. Terminamos fazendo comentários sobre o processo de criação da Matemática. Sua história revela que ele é, também, tumultuado e contraditório. E pensar que tudo aconteceu a partir de um mal-entendido!
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