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O presente artigo é uma seqüência natural ao que publicamos na RPM 13, sobre os cálculos dos períodos siderais dos planetas e de suas distâncias ao Sol. Vamos mostrar como Kepler descobriu que as órbitas dos planetas não são perfeitamente círculos, mas sim elipses. Como o leitor verá, essa descoberta está fundamentada em fatos geométricos elementares, sendo, pois, mais um episódio interessante de aplicação da Geometria à Astronomia.
Como explicamos em nosso artigo anterior, Copérnico calculou as distâncias dos planetas ao Sol no pressuposto de que eles se deslocassem com velocidades constantes em órbitas circulares centradas no Sol. Os dados de observação, entretanto, eram insuficientes para comprovar isso, de forma que o próprio Copérnico teve de fazer modificações em sua teoria, uma das quais consistia em supor o Sol um pouco deslocado dos centros das órbitas. Mas nem isto foi suficiente e ele teve de ir mais longe, recorrendo mesmo ao principal artifício usado por Ptolomeu e outros astrônomos da antiguidade — o epiciclo. O epiciclo é um círculo de raio r, centrado na circunferência de outro círculo de raio R maior do que r, este último chamado o círculo deferente (Fig. 1). Eudoxo (séc. IV a.C), Hiparco ( * 150 a.C), Ptolomeu ( ± 105 d.C.) e outros astrônomos da antiguidade valeram-se desse arranjo "deferente-epiciclo" para explicar o movimento errático dos planetas no meio das estrelas fixas, "incrustadas" na abóboda celeste. Assim, supondo o planeta em movimento uniforme no epiciclo, e o centro deste em movimento uniforme em volta da Terra, um ajuste conveniente das velocidades e dos raios r e R permitia explicar os movimentos direto e retrógrado dos planetas (Fig. 2), como se observam nos céus desde a mais alta antiguidade.
Na tentativa de ajustar sua teoria aos dados de observação, Copérnico acabou incluindo 48 epiciclos em seu sistema. Era demais! Descaracterizava a idéia simplificadora de um sistema heliocêntrico e representava um forte ponto de identificação com o antigo sistema de Ptolomeu, que se pretendia suplantar. E do ponto de vista de fazer previsões dos movimentos dos planetas e construir tabelas de utilidade prática, o sistema de Copérnico não apresentava vantagens maiores do que o antigo e arraigado sistema geocêntrico de Ptolomeu. Isso explica por que ele não vingou de imediato. Depois de sua publicação em 1543, decorreriam cerca de 100 anos para que viesse a ser definitivamente aceito na comunidade científica. É importante lembrar também que os dados de observação e as tabelas astronômicas existentes no tempo de Copérnico deixavam muito a desejar do ponto de vista da precisão. O próprio Copérnico fez bem poucas observações durante toda sua vida1, e as que fez não tinham o grau de precisão das que se fizeram na antiguidade. Ele utilizava e confiava nos dados fornecidos pelos tratados antigos, sobretudo o Almagesto de Ptolomeu. Essa insuficiência de dados precisos era uma das dificuldades maiores para se decidir qual dos dois modelos planetários correspondia à realidade. E quem compreendeu bem o problema e empenhou toda uma vida para superar essas dificuldades foi o dinamarquês Tycho Brahe, de quem falaremos a seguir.
De linhagem nobre, Tycho Brahe (1546-1601) tornou-se um apaixonado da Astronomia aos 14 anos de idade, quando observou um eclipse do Sol. Ao que parece, o que mais o impressionou nesse episódio não foi tanto o fenômeno em si, mas sua previsibilidade. A possibilidade de prever o curso dos astros a partir de certas hipóteses, dados de observação e cálculos matemáticos, exerceu tamanho fascínio sobre o jovem Tycho que, a partir de então e por toda sua vida, ele iria dedicar-se integralmente à Astronomia. Um segundo acontecimento marcante na vida do jovem astrônomo ocorreu na noite de 17 de agosto de 1563, quando ele contava 17 anos de idade. Observando os céus, ele notou que os planetas Júpiter e Saturno estavam praticamente coincidentes. Consultando, porém, as tabelas em uso na época, tanto as chamadas "tabelas Alfonsinas" quanto as de Copérnico, verificou, para sua decepção, que elas continham imprecisões grosseiras sobre esse evento. E a causa disto eram as observações imprecisas em que se baseavam. Esta foi a grande descoberta que fez o nobre dinamarquês: a Astronomia estava carente de dados de observação que fossem confiáveis. E ele estava decidido a fazer o que fosse necessário para mudar esse estado de coisas: construir instrumentos adequados e desenvolver métodos precisos de observação dos astros. Dos 17 aos 26 anos de idade, Tycho estudou em várias universidades européias, viajou, conheceu astrônomos, adquiriu vários instrumentos de observação e construiu muitos outros, maiores e cada vez mais precisos. Um terceiro acontecimento na vida de Tycho Brahe, decisivo para espalhar sua fama de grande astrônomo, foi o aparecimento de uma nova estrela nos céus no dia 11 de novembro de 1572. Por cerca de um mês essa estrela brilhou mais do que o planeta Vênus (Estrela Dalva ou Estrela Vésper), até que, a partir de dezembro, começou a perder gradualmente seu brilho, desaparecendo por completo em março de 15742. Ora, nessa época era ainda generalizada a crença de que na esfera das estrelas fixas, onde imperava a perfeição divina, tudo era imutável ad aeternum. Só na Terra, onde vivemos, e em sua proximidade, a chamada região sublunar, é que podiam ocorrer movimentos e transformações. Cumpria, pois provar que o novo fenômeno situava-se nesta região; e só havia uma maneira de fazê-lo: mostrando que a nova estrela se deslocava entre as estrelas fixas. Astrônomos de toda a Europa lançaram-se avidamente na tarefa de observar o novo astro que surgira nos céus, procurando detectar seu deslocamento entre as estrelas fixas. Era chegada "a vez e a hora de Tycho Brahe". Ele acabara de construir um novo sextante, cujos braços mediam quase dois metros de comprimento! E que se articulavam com precisão num eixo de bronze que não permitia folga. O arco do instrumento possuía uma escala graduada, não apenas em graus, mas também em minutos de graus! No dizer de um seu biógrafo (Koestler, The Sleepwalkers3, p. 289), "era como possuir um moderno canhão, em comparação com os estilingues de seus
colegas". Ninguém mais, senão Tycho, tinha condições de garantir que o novo astro estava realmente parado em meio às estrelas fixas. E foi esse o seu veredito, implacável e irrefutável, como ele substanciou, narrando, em detalhes, seus instrumentos e suas observações, em seu primeiro livro De Nova Stella. Tycho Brahe sempre contou com o irrestrito apoio do rei Frederico II da Dinamarca. Mas era excêntrico e arrogante, qualidades estas certamente ampliadas pelo orgulho de sua fama. Em 1575 ameaçou transferir-se para a Basiléia, e o rei tudo fez para impedir que isto acontecesse. Ofereceu-lhe o castelo que quisesse para se instalar com toda sua parafernália: e ele recusou! Ofereceu-lhe então a ilha de Huen, no canal que separa a Dinamarca da Suécia, para que ali construísse o observatório de seus sonhos, casa para morar, oficinas, fábrica de papel, impressora, tudo à custa do reino! E mais ainda: com jurisdição sobre a ilha e seus moradores e direito aos lucros sobre tudo o que ali se produzisse. Só um louco recusaria tão generosa dádiva! Tycho Brahe era excêntrico, arrogante, autoritário e outras coisas mais. Porém não teve a insensatez de recusar tão generosa oferta. Na ilha de Huen construiu seu "Uraniburgo", ou "Castelo dos Céus". Ali passou os próximos 20 anos de sua vida, coletando o mais rico acervo de observações astronômicas até então conseguido. A importância dessas observações torna-se evidente pelos seguintes fatos: eram observações de alta precisão, o que de melhor se poderia conseguir sem auxílio de instrumentos ópticos (que só começaram a aparecer a partir de 1609); Tycho fez um levantamento completo das coordenadas de mais de 700 estrelas fixas; as observações dos planetas, da Lua e do Sol, que são os corpos celestes que se deslocam entre as estrelas fixas, foram efetuadas continuamente, dia após dia, ao longo de duas décadas, o que nunca acontecera antes. De posse dessa riqueza de dados, Tycho Brahe podia concluir com segurança que o sistema heliocêntrico, tal qual exposto por Copérnico, era insustentável. Exigia modificações. E ele tinha uma proposta neste sentido, com os planetas, exceto a Terra, girando em torno do Sol, e este, por sua vez, girando em torno da Terra, arrastando consigo todos os demais planetas. Era, como se vê, um sistema híbrido, uma esdrúxula combinação de geocentrismo e heliocentrismo. Não vingaria. Frederico II morreu em 1588. Seu sucessor, Cristiano IV, não se mostrou tão tolerante com o extravagante Tycho, que governava a ilha de Huen como verdadeiro tirano, maltratando seus súditos, aprisionando-os injustamente e até mesmo desobedecendo decisões judiciais. Embora indiretamente, o cerco foi-se fechando ao redor de Tycho, cujo temperamento arrogante, aliado à recusa de corrigir seus excessos, levou-o a abandonar a Dinamarca em 1597. Por dois anos seguidos ele vagou por diferentes lugares da Europa, levando consigo seus manuscritos, instrumentos, familiares, criados e assistentes, até que, em junho de 1599, fixou residência no castelo de Benatek, próximo à cidade de Praga, como "matemático imperial" do imperador Rodolfo II da Boêmia. Essa mudança para Praga aproximava Tycho Brahe da personagem principal da nossa história, de quem falaremos a seguir.
Ao contrário de Tycho Brahe, Johannes Kepler (1571-1630) era pobre, de saúde precária, tímido, e teve uma infância infeliz. Nasceu no sudoeste da Alemanha, em Weil-der-Stadt, um lugarejo situado 30 km a oeste de Stiittgart, a capital de Wiirtenberg. Kepler viveu numa época em que os países da Europa se digladiavam numa série interminável de disputas e guerras religiosas, quando massacres e perseguições, as mais cruéis, eram praticadas, tanto por católicos como por protestantes. Luteranos convertidos, os duques de Wiirtenberg acabaram criando em seus domínios um eficiente e moderno sistema educacional, instrumento eficaz na formação de clérigos eruditos e competentes, tão necessários nas controvérsias religiosas que grassavam por toda parte. O ambiente familiar do menino Kepler era bastante adverso. Não seriam seus pais que iriam bem cuidar de seus estudos, mas o Estado, cujo sistema educacional localizava e encaminhava os meninos inteligentes. Se pobres, como era o caso de Kepler, não faltavam bolsas que os dotavam dos meios necessários para se dedicarem ao trabalho escolar sem preocupações. Foi assim que Kepler, cuja brilhante inteligência revelou-se precocemente, embarcou numa carreira de estudos que o levaria da escola elementar ao seminário e deste à universidade. Aos 23 anos de idade, quando ainda estudante de Teologia em Tiibingen, Kepler foi indicado para preencher o posto vago de Professor de Astronomia e Matemática na universidade protestante de Gratz, na Áustria. De início, ele hesitou: não tinha planos de ser astrônomo, não se considerava matemático e não queria abandonar seus estudos de Teologia. Mas acabou aceitando a proposta, com a condição de permanecer em Gratz apenas por certo tempo, devendo logo retomar seus estudos de Teologia em Tiibingen. Talvez por não ser bom didata, em seu segundo ano em Gratz, Kepler já não tinha mais alunos de Matemática e era obrigado a lecionar Retórica e Literatura Latina para justificar seu salário. Mesmo no final de seu primeiro ano, já estava desesperado para retornar a Tiibingen. Mas não haveria retrocessos; os acontecimentos se sucederiam por caminhos novos e inesperados. Kepler tornara-se adepto do sistema de Copérnico quando ainda estudante em Tiibingen. Mas o que o enveredou definitivamente para a Astronomia foi uma idéia em si sem nenhuma importância, que lhe ocorreu no curso de uma de suas aulas em 1595. Os planetas então conhecidos eram seis: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno. (Urano, Netuno e Plutão só seriam descobertos muito mais tarde.) Por que exatamente "seis" planetas?, indagava Kepler. Essa questão lhe remoía a mente, até que naquela aula de 1595 lhe ocorreu a
"resposta", que ele sempre considerou o maior achado de sua vida. Seis planetas significavam cinco espaços entre os possíveis pares de planetas consecutivos. Ora, cinco eram os possíveis poliedros regulares ou poliedros de Platão (veja p. 42 desta RPM). Portanto, pensava Kepler, entre as esferas de dois planetas consecutivos devia encaixar-se um poliedro regular, circunscrito a uma esfera e inscrito na outra (RPM 3, pp. 8 e 9). Foi essa ideia bizarra o tema do primeiro livro do jovem astrônomo, intitulado Mysterium Cosmographicum, publicado em Tiibingen em 1596. Tycho Brahe, como vimos, era exímio observador. Mas não tinha competência matemática para trabalhar os dados de suas observações. Quando recebeu e examinou o livro de Kepler, logo reconheceu em seu autor um talento matemático singular, que ele, Tycho, não possuía, e de que necessitava para ajudá-lo a aperfeiçoar sua nova teoria planetária. Kepler, por seu lado, nunca teria sido capaz de fazer boas observações dos astros, pois tinha visão deficiente. Ele precisava conhecer os dados precisos de observação de Tycho para aperfeiçoar a teoria exposta em seu livro. Eles trocaram correspondência por cerca de dois anos, e, decerto, perceberam o quanto cada um necessitava do outro. Foram esses interesses mútuos que acabaram fazendo de Kepler um assistente de Tycho Brahe, em Benatek, a partir de fevereiro de 1600. Tycho Brahe morreu em outubro de 1601, sem que o sistema planetário de seus sonhos pudesse ser concluído. Seus últimos dias foram de muito sofrimento, entremeados de delírios agonizantes. Nos momentos de lucidez ele dizia sempre que esperava não ter vivido em vão. E a Kepler deixou a recomendação de terminar o trabalho matemático que estabelecesse o sistema planetário tychoniano. Kepler, por sua vez, esperava servir-se do legado de Tycho em seu próprio benefício, para aperfeiçoar sua estranha teoria cósmica. O destino, todavia, não iria permitir nem uma coisa nem outra.
Com a morte de Tycho Brahe,
Kepler foi logo nomeado seu sucessor, no posto de Matemático Imperial,
onde permaneceu até a morte de Rodolfo II, em 1612.
Nos seis primeiros anos de sua permanência em Benatek, ele descobriu suas
duas primeiras leis planetárias, que aparecem no seu segundo livro,
publicado em 1609, sob o título de Astronomia Nova. Seu trabalho
foi intenso e árduo, envolvendo séries intermináveis de longos e
laboriosos cálculos, procurando acertar hipóteses que freqüentemente
levavam a conclusões falsas e exigiam recomeçar tudo de novo. As
dificuldades vinham de preconceitos antigos. Desde Aristóteles,
firmara-se a convicção de que os corpos celestes, dada sua perfeição, só
podiam mover-se em círculos, pois eram estas as únicas órbitas
"perfeitas"; e moviam-se com velocidade uniforme, pois uma variação na
velocidade seria uma imperfeição. Presos a esses "dogmas", os astrônomos tinham de recorrer a artifícios geométricos para explicar os movimentos
observados nos céus. O arranjo
epiciclo-deferente era apenas um desses artifícios. Em seus
intermináveis cálculos e tentativas de ajustar teoria à realidade, Kepler
foi abandonando esses artifícios e finalmente os dogmas da órbita circular
e do movimento uniforme. Este último caiu primeiro quando, já num estágio
avançado de seu trabalho, Kepler decidiu calcular a órbita da Terra, como
explicaremos a seguir.
Desde sua chegada a Benatek, Kepler concentrou-se no planeta Marte. E por uma razão muito simples: sendo o primeiro dos planetas exteriores, ele se move mais rapidamente em sua órbita, retornando logo à posição inicial, o que facilita seu estudo. Ele é também aquele cuja órbita é mais elíptica e que, portanto, mais difere de um círculo. Isto foi, de início, um desafio para Tycho e seu assistente Longomontanus, que acabou desistindo de Marte, entregando-o a Kepler logo que este chegou a Benatek. A dificuldade foi providencial para a descoberta da órbita elíptica. Kepler calculou várias distâncias da Terra ao Sol com o engenhoso procedimento de considerar sucessivas posições da Terra a partir de uma oposição de Marte e nos sucessivos retornos de Marte à posição inicial M (Fig. 3). Inicialmente Marte encontra-se em posição em M, a Terra em To e o Sol em S. Depois de 687 dias Marte volta à posição M (veja a RPM 13, p. 8), enquanto a Terra, em T1, ainda não completou sua segunda volta. No segundo retorno de Marte a M, a Terra estará em T2; e assim sucessivamente. Kepler podia facilmente calcular os ângulos MST1 MST2, etc, a partir do conhecimento das posições do Sol na eclítica, ou seja, a partir das posições do Sol entre as estrelas fixas ao longo do ano; e Tycho lhe havia deixado tabelas dessas posições. Igualmente, os ângulos MT1S, MT2S, etc, podiam ser calculados a partir dos dados das tabelas deixadas por Tycho. Assim, tomando-se a distância SM como unidade de comprimento, os triângulos SMT1, SMT2, etc, podiam ser resolvidos trigonomericamente, a partir do conhecimento dos ângulos e do lado SM, o que permitia calcular as distâncias ST1 ST2, etc, em termos da distância SM. Dessa maneira Kepler calculou várias distâncias da Terra ao Sol, concluindo que a órbita da Terra era um círculo, com o Sol localizado um pouco fora de seu centro, como indica a Fig. 4, onde 5 representa o Sol e C o centro da órbita terrestre. Para a distância CS, Kepler encontrou o valor de 1/59 do raio da órbita. Isto significa que num círculo de 5,9 cm de raio, a distância CS é de apenas 1 mm! ... Kepler notou que a Terra se deslocava com velocidade não uniforme, mais depressa quanto mais perto estivesse do Sol e mais devagar quanto mais longe. Ele construiu uma tabela do movimento da Terra, com as posições diárias do planeta.
Em seguida, Kepler passou a estudar a órbita de Marte, usando agora seu conhecimento das distâncias da Terra ao Sol. Seu procedimento aqui não é menos engenhoso que no estudo anterior da órbita da Terra. Ele resolve novamente triângulos como SMT^ (Fig. 3), mas desta vez para achar a distância SM em termos da distância ST1 da Terra do Sol. E este procedimento é repetido em várias oposições de Marte, SMT1 SM'T1', SM" T1", etc. (Fig. 5). Em cada uma destas situações é preciso resolver um triângulo (como SMT1 SM'Tl, SM"Tl', etc.) para encontrar as distâncias de Marte ao Sol, SM, SM', SM", etc, em termos das distâncias conhecidas da Terra ao Sol, ST1, ST1 ", STl', etc. Tudo isso foi possível porque os dados necessários a esses cálculos estavam lá nas tabelas de Tycho Brahe! Realizados esses cálculos, Kepler pôde verificar que a órbita de Marte não podia ser circular, ela mais se parecia com uma oval. Mas que oval seria esta? Novamente aqui muitas tentativas foram feitas até que ele acabou acertando na elipse, com o Sol em um dos focos.
A elipse já apareceu nas páginas desta Revista pelo menos três vezes (RPM 7, dd. 43 e 44; RPM 9, pp. 9 e 10; RPM 11, pp. 42 a 44). Mas é uma curva tão notável, que novamente merece aqui um destaque especial. Ela é conhecida desde a antiguidade como seção cônica, por ser obtida como interseção de um plano por um cone ou cilindro circulares (Fig. 6). Em 1822, o matemático belga G. P. Dandelin deu uma linda demonstração da propriedade focal da elipse, que assim se anuncia: No plano da elipse existem dois pontos F e F', chamados focos, tais que é constante a soma PF + PF', onde P é um ponto genérico da elipse. A demonstração de Dandelin, no caso do cilindro, está ilustrada na Fig. 7. Ela pode ser facilmente compreendida e quase dispensa palavras. O cilindro é cortado por um plano ir que determina a elipse. Duas esferas de diâmetros iguais ao do cilindro são nele introduzidas de modo a tangenciar o plano ir nos pontos F e F'. Observe que as esferas tangenciam o cilindro em círculos paralelos, como ilustra a Fig. 7. Seja P um ponto qualquer da elipse. A geratriz do cilindro que passa por P tangencia as esferas nos pontos A e B, respectivamente, localizados nos círculos mencionados. Como os círculos são paralelos, o segmento AB tem comprimento constante, à medida que P varia na elipse. Notemos em seguida que os segmentos PA e PF têm o mesmo comprimento, pois ambos tangenciam a mesma esfera a partir do mesmo ponto P. Do mesmo modo, PB = PF'. Então, PF + PF' = PA + PB = AB = const., o que conclui a demonstração de Dandelin. O leitor não terá dificuldade de repetir a mesma demonstração no caso do cone (Fig. 8). Consideremos uma elipse com semi-eixos a e b, sendo a > b. Seja c a distância de cada foco ao centro da elipse (Fig. 9). É fácil verificar que a, b e c estão assim relacionados: a2=b2+c2. A excentricidade e da elipse, por sua vez, é definida por e= c/a. Temos então
A primeira destas relações mostra que a excentricidade varia entre zero e 1. Pela segunda relação, vemos que a elipse é tanto mais achatada quanto maior sua excentricidade; e tanto mais parecida com um círculo quanto menor a excentricidade. Kepler verificou que a órbita de Marte era uma elipse de excentricidade . Isto nos dá, pela segunda das relações acima,
Assim, se desenharmos a órbita de Marte com semi-eixo maior igual a 10 cm, o semi-eixo menor será , ou seja, apenas 1 mm a menos que o semi-eixo maior. Isto mostra que é impossível perceber visualmente que a órbita de Marte não é circular! Não houvesse outra razão, esta já nos bastaria para admirarmos a fançanha de Kepler ao descobrir que a órbita de Marte é elíptica.
Kepler estendeu a todos os planetas do sistema solar a lei da órbita elíptica, que descobrira para o planeta Marte, a qual ficou conhecida como sua 1.ª lei e que assim se enuncia: Cada planeta descreve uma órbita elíptica, da qual o Sol ocupa um dos focos. Antes mesmo de descobrir essa lei, Kepler encontrara outra regularidade interessante no movimento dos planetas. Como vimos atrás, ele havia constatado que a velocidade da Terra era variável e que o Sol estava afastado do centro da órbita. Depois de muitas tentativas, erros e recuos, ele acabou acertando na lei correta, também generalizada para todos os planetas. Conhecida como sua 2." lei, ela tem o seguinte enunciado: Os raios vetores que unem um planeta ao Sol varrem áreas iguais em tempos iguais. Com referência à Fig. 10, isto significa que se o planeta vai de A até B no mesmo tempo que vai de C até D, então as áreas SAB e SCD são iguais. Essas duas primeiras leis de Kepler aparecem no seu livro Astronomia Nova. A terceira lei, já explicada e utilizada na RPM 9, p. 5, aparece em um outro livro de Kepler, intitulado Harmonice Mundi e publicado em 1619. É interessante notar que por muitas décadas as três leis de Kepler permaneceram como que num limbo, sem que ninguém se apercebesse de sua importância. O próprio Kepler, já no fim de sua vida, julgava que seu trabalho mais significativo fosse aquela construção antiga do Mysterium Cosmographicum. Caberia a Isaac Newton (1642-1727) redescobrir no emaranhado dos escritos de Kepler suas três leis e nelas identificar os fundamentos da Mecânica Celeste, sintetizados em sua Lei da Gravitação Universal.
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