João Bosco Pitombeira
PUC-RIO

       O problema

Dois beduínos encontram no deserto uma urna de 10 litros, cheia de essências preciosas, e duas urnas vazias de 3 e 7 litros, respectivamente. Como dividir igualmente as essências entre os dois, usando somente as urnas como medidas?

Este problema, com esta formulação ou outras semelhantes, mais ou menos poéticas, certamente já foi encontrado por quase todos nós. Ele é, geralmente, resolvido por tentativas. Apresentamos aqui uma solução geométrica sistemática para o problema, que o resolve completamente, dizendo quando há, ou não, solução.

O tratamento deste problema, por meio da consideração de caminhos especiais em regiões de malhas triangulares, como o que apresentamos aqui, encontra-se na literatura, por exemplo, em [1] e [2]. Neste artigo, acrescentamos a estes argumentos uma condição suficiente para a existência de solução do problema de dividir h litros em duas partes iguais quando se dispõe de 3 vasos de capacidades h, b e c, com  b + c h.

 

     As ferramentas

Apresentamos, preliminarmente, as ferramentas necessárias para a solução do problema.

Sejam ABC um triângulo equilátero, P um ponto de seu interior e x, y, z as distâncias de P a BC, AC, e AB, respectivamente, (fig. 1). Dizemos, então, que (x, y, z) são as coordenadas baricêntricas de P. É resultado conhecido — e que se pode confirmar quando se calcula a área do triângulo ABC como soma das áreas dos triângulos PAB, PBC e PBA — que, se h é a altura do triângulo equilátero ABC, tem-se

x + y + z = h.


Num
triângulo equilátero ABC, de altura h, igual a um número inteiro de unidades, é possível distinguir os pontos de coordenadas baricêntricas inteiras por meio de uma malha triangular, malha esta formada pelos segmentos internos ao triângulo, paralelos aos lados, distando entre si, e dos lados, de um número inteiro de unidades, como na figura 2. Os pontos de coordenadas baricêntricas inteiras são as intersecções de três destes segmentos.

Estas coordenadas baricêntricas constituem um bom modelo para consideração de três números de soma constante. É possível ainda, por meio de desigualdades envolvendo estas coordenadas, destacar regiões do triângulo. Assim, por exemplo, no triângulo ABC da figura 3, de altura h = 20, os pontos P = (x, y, z), de coordenadas baricêntricas inteiras e tais que x < 7, são, obviamente, os pontos da malha que pertencem ao quadrilátero Q1BCQ2. Na figura 4, com h = 12, está destacada a região x 10, y 8 e z 6, ou seja, o hexágono Q1Q2Q3Q4Q5Q6. As regiões que consideraremos serão sempre polígonos com fronteira formada por segmentos da malha (dos lados ou do interior do triângulo).

Numa tal região, distinguiremos alguns caminhos formados por segmentos da malha triangular e que chamaremos de percursos admissíveis nessa região. Um percurso admissível numa região é uma poligonal formada por segmentos da malha triangular, com vértices exclusivamente na fronteira da região, poligonal esta que se comporta como se a região fosse uma mesa de bilhar, isto é, como se a fronteira da região fosse formada por espelhos, nos quais a poligonal se reflete. Ou seja, um percurso admissível é um caminho que parte de um ponto da malha, na fronteira da região, prossegue por um dos segmentos da malha e só muda de direção ao encontrar um lado da região (se o segmento já estiver num lado da região, só mudará de direção ao encontrar um segundo lado), onde se comporta como um raio de luz ao encontrar um espelho (isto é, como na reflexão, volta pelo segmento da malha que forma, com a normal a este lado, o mesmo ângulo que fazia o segmento anterior, mas em semiplanos opostos em relação à normal e, é claro, no mesmo semiplano em relação ao lado em que incide). E, assim, o caminho prossegue até um vértice final, também na fronteira da região.

Na figura 3, destacamos o percurso admissível (5, 15, 0) (5, 0, 15) (0, 5, 15) (7, 5, 8) (0, 12, 8), que une os pontos (5, 15, 0) e (0, 12, 8).

Na figura 4, as setas indicam um percurso admissível que une o ponto (10, 2, 0) ao ponto (2, 4, 6), na região x 10, y 8, z 6. Nessa mesma região, é impossível unir os pontos (10, 2, 0) e (5, 7, 0) por meio de um percurso admissível.

Um problema natural que se põe é o seguinte: dados dois pontos P1 e P2 da malha triangular na fronteira de uma região, é possível uni-los por um percurso admissível?

Na figura 4, foram destacados os segmentos da malha que distam dos lados da região e entre si de duas unidades, formando triângulos de altura 2. Vê-se que, neste caso, se P\ for um vértice de um destes triângulos e se P2não for, o problema de uni-los por um percurso admissível não tem solução. Já se P2 for também vértice de um destes triângulos destacados,   pode  existir solução, ou não, para o problema. Por exemplo, os pontos (10, 0, 2) e (5, 7, 0) não são ligados por um percurso admissível. O ponto (4, 8, 0) só pode ser atingido a partir de um vértice das linhas duplas na figura. Nessa região, verifica-se também a existência de um percurso "singular", aquele de vértices (6, 0, 6), (0, 6, 6) e (6, 6, 0), do qual não há como "sair".

 

     A solução

Sejam dados três vasos V1 V2, V3 de capacidades, respectivamente, a, b, c litros e contendo, respectivamente, x, y e z litros de líquido, com a, b, c, x, y, z números inteiros ( 0).

Seja h = x + y + z e tomemos um triângulo eqüilátero de altura h.

Se x a, y b e z c, ao darmos as capacidades dos três vasos, estamos delimitando uma região bem definida da malha triangular. A figura 5 ilustra um caso típico. O ponto P1 corresponde ao caso em que o 1 vaso, A, contém 3 litros, o segundo, B, 5 litros e o terceiro, C, 2 litros.

A operação de transpor líquido de um vaso para outro, até encher o segundo ou esvaziar o primeiro, corresponde a deslocar-se sobre a malha até atingir um dos lados da região. Por exemplo, o percurso P1 = (3, 5, 2) P2 = (6, 2, 2) corresponde a verter líquido do segundo vaso no primeiro, até encher este. O percurso P1 P3 corresponde a verter líquido do terceiro vaso no segundo, até esvaziar aquele. O percurso Pj P5 corresponde a transferir líquido do primeiro vaso para o segundo até esvaziar o primeiro (e encher o segundo) analogamente P1 P4 corresponde a transferir o líquido do segundo para o terceiro, até encher este último.

Com esta interpretação, as situações geométricas que examinamos até agora admitem sempre uma leitura em termos de vasos e de quantidades de líquido.

Assim, na figura 3, temos três vasos com capacidades, respectivamente, de 7, 20 e 20 litros, e o percurso indicado mostra como, a partir de (5, 15, 0), é possível, com estes três vasos, medir 12 litros:

(5, 15, 0) (5, 0, 15) transferindo 15 litros do 2 para o 3 vaso,
(5, 0, 15) (0, 5, 15) transferindo 5 litros do 1
para o 2 vaso,

(O, 5, 15) -» (7, 5, 8)   transferindo 7 litros do 3 vaso para o 1,
(7, 5, 8)   -> (0, 12, 8) transferindo 7 litros do 1
para o 2 vaso.

Dados os vasos de capacidades 10, 8 e 6 litros, respectivamente, e sabendo, por exemplo, que 12 litros de líquido estão distribuídos igualmente pelos 3 vasos, examinando a fig. 4, verifica-se que é impossível medir 5 litros de líquido usando somente estes vasos. Com efeito, não existe percurso de (4, 4, 4) para algum ponto de coordenadas 5, 7 e 0, correspondendo somente às operações de encher ou esvaziar algum dos vasos.

Um dos casos mais conhecidos é aquele em que h = 2d = a = b + c, e pedimos para dividir o líquido, originalmente no primeiro vaso, em duas partes iguais. Exemplos deste problema estão ilustrados nas figuras 6, 7, 8 e 9.

No próximo parágrafo, mostraremos que, neste caso, em que h = b + c, 0 y b e 0 z c, uma condição suficiente para que qualquer par de pontos de coordenadas inteiras sobre a fronteira da região possa ser interligado por um percurso admissível é que  b e  c sejam primos entre si.

Na figura 9, como mdc(b, c) = mdc(17, 3) = 1, já sabemos, então, que o problema tem solução. Esta condição é suficiente mas não necessária.  Assim, no caso de   a = 20,  b = 6 e c = 14, embora  mdc(b, c) = mdc(6, 14) = 2 1, o problema tem solução. Já no caso de   a=10, b = 6 e c = 4 (fig. 6), o problema não tem solução, pois o ponto (5, 5, 0) não é vértice de um dos triângulos de altura 2 em que a região é decomposta.

A figura 7 ilustra uma solução (encontre outras!) do problema dos beduínos que pretendiam dividir 10 t em duas partes iguais, dispondo de urnas de 10, 3 e 7 litros. No nosso modelo, eles estavam no ponto P, = A e pretendiam atingir um ponto com duas coordenadas iguais a 5. Na região y 3, z 7, eles podem chegar ao ponto (5, 0, 5) pelo percurso indicado pelas setas e linhas duplas na figura 7, o que corresponde às seguintes operações com o líquido:

   encher o 2 vaso com líquido do 1;

   passar o líquido do 2 vaso para o 3;

   encher o 2 vaso com líquido do 1;

   passar o líquido do 2 vaso para o 3;

   encher o 2 vaso com líquido do 1;

   encher o 3 vaso com líquido do 2?;

   passar o líquido do 3 vaso para o 1;

   passar o líquido do 2 vaso para o 3;

   encher o 2 vaso com líquido do 1;

•  passar o líquido do 2 vaso para o 3.

 

     Os resultados e suas provas

Afirmamos, na seção anterior, que, se mdc(b, c) = 1, então, qualquer par de pontos de coordenadas inteiras sobre a fronteira da região 0 y b e 0 z c, onde b + c = h, pode ser ligado por percursos admissíveis nessa região. Para demonstrar este fato, necessitamos de um resultado da teoria das congruências.

Definição. Dois inteiros a e b são congruentes módulo m se, e somente se, m divide (a - b).

Se  a b são congruentes módulo  m,  escrevemos  a = b (m).

Teorema. Se mdc(c, m) = 1 então, para qualquer b inteiro, a congruência cx = b (m) possui solução inteira, que é única, módulo  m.

A prova do Teorema é consequência do seguinte resultado sobre o máximo divisor comum.

Lema. Se  mdc(c, m) = 1,   existem inteiros  r, e s tais que

rc + sm = 1

Prova do Lema: Tomamos o conjunto M dos números maiores do que, ou iguais à, 1 e que sejam da forma xc + ym,  isto é, seja

M = {xc + ym 1, com x Z e y   Z).

Como cem são de Aí, o conjunto M não é vazio. Como está contido no conjunto dos números naturais, M tem um primeiro elemento que chamamos de d, isto é, d M e d a, qualquer que seja a M. Temos, então, que existem inteiros  r  e  s  tais que   rc + sm = d.  Vejamos que, se a = xc + ym  for outro elemento qualquer de M, então a será múltiplo de  d. Com efeito, sendo a d,  podemos dividir a por d, obtendo quociente q e resto q. Ou seja

a = qd + com  0 < d.

Substituindo  por suas expressões em termos de  m,   concluímos que

= (x qr)c + (y qs)m.

Isto significa que  = 0 ou   M. Como   < d  e d é o menor elemento de M, devemos ter   = 0, o que prova que d divide a. Isto implica que d é um divisor comum de c e m (porque ambos estão em M). Donde, pela hipótese de que  mdc(c, m) = 1, devemos ter  d 1, donde d= 1  e o lema está provado ■
 

Prova do Teorema: Com efeito, se mdc(c, m) = 1, existem, então, inteiros r e s tais que rc+sm = 1,  que, multiplicada por  b,  dá:

rcb + smb = b,

ou seja:                                                 c(rb) b = m(sb).

Isto significa que  divide a diferença  c(rb) b,  ou seja

c(rb) b (m),

e assim x = rb é a solução de  cx b (m) ■

Por exemplo, a congruência                      3x 2   (5)

tem a solução  x = 4,  pois  3 . 4    2 (5). Já

3x 1 (6)

não tem solução, como é fácil verificar. A congruência

4x 1   (6)

tem solução, pois. 4 . 5 = 2 (6). Isso mostra que a condição do teorema garante a existência de solução, mas não é necessária.

De posse deste resultado, podemos demonstrar o fato geométrico de que se mdc(b, c) = 1, então qualquer ponto de coordenadas inteiras sobre a fronteira da região dada pode ser ligado a qualquer ponto de coordenadas inteiras sobre a fronteira.

Em primeiro lugar, é obviamente suficiente demonstrar que um ponto qualquer de coordenadas inteiras sobre a fronteira pode ser ligado ao vértice A do triângulo. Podemos, ainda, supor que b c, pois, em virtude da simetria do ângulo em relação à altura baixada do vértice A, se b < c, uma reflexão do triângulo em torno desta altura transforma o problema em um para o qual  b > c.

Prova: Sendo a região definida por  y b e z c, com b + c = h, vemos que se trata do paralelogramo APlP2P3 em que A . (h, 0, 0), Pl, = (c, b, 0). P2 = (0, b, c), P3 = (b, 0, c). Mostraremos que um ponto qualquer de coordenadas inteiras, X, sobre P2P3 pode ser atingido a partir de A. Supondo que X = (x, y, c), observemos, então, que a congruência cz x(b) sempre tem solução, visto que mdc(c, b) = 1. Saindo de A, atingiremos, em primeiro lugar, o ponto Pl = (c, b, 0) e, então, por reflexão sobre PlP2, o ponto P4, depois o ponto R, e depois, caso não existisse a reta AC, o ponto T = X'. Observamos que tomando, agora, como unidade de medida o lado do triângulo menor da malha. teremos:

Devido à reflexão sobre o lado AC, em vez de atingirmos T, o caminho será refletido em 5 e atingiremos então V, e (no caso particular da figura), depois disso, o ponto  X.

Observamos que

O teorema nos garante que, qualquer que seja o ponto X tomando sobre P2P3, um certo múltiplo s de c (no caso 2 vezes), atingirá um ponto X'   tal que

A figura 9 ilustra, num outro caso, como atingir o ponto Y4 = (10, 7, 3) a partir de (20,0,0). Como a congruência 3x 10 (17) se verifica para x = 9, e este é o menor inteiro positivo que seja solução, vemos que, para atingir Y4, devemos ter 9 segmentos de comprimento igual a PlP2.

Os casos em que o ponto a ser atingido se encontra sobre os outros dois lados da região são tratados de maneira análoga, e deixados como exercícios para o leitor.

Estão, agora, justificadas as ferramentas que usamos para atacar o problema dos três vasos.

 

     Comentários

Por que apresentar este problema? Em primeiro lugar, é um problema interessante, pois, para sua análise, usamos ferramentas geométricas e aritméticas, mostrando o inter-relacionamento das diferentes áreas da Matemática. Além disso, é um problema elementar, no sentido em que não utiliza idéias sofisticadas, e para cuja solução se exige basicamente a capacidade de raciocinar cuidadosamente sobre idéias simples. Uma outra razão para estudá-lo é que se trata de um problema capaz de despertar a curiosidade dos alunos e muito bom para mostrar a superioridade de um método sistemático de solução sobre as soluções por tentativas.

Os leitores certamente perceberão direções em que a análise aqui apresentada pode ser refinada. Os diferentes casos apresentados sugerem várias perguntas. A mais óbvia é, quase certamente, achar condições necessárias para o problema de dividir 2d litros de líquido em partes iguais.

O ideal, para apresentação deste problema em sala de aula, seria fornecer aos alunos papel quadriculado com coordenadas baricêntricas, e fazer com que obtenham material "experimental" que lhes permita fazer conjecturas, que serão depois transformadas em teoremas.
 

Bibliografia

[1]  Coxeter, H. S. M. e Greitzer, S. L. Geometry Revisited, The Mathematical Association of Ame­rica, 1967 (4.6, p. 89).

[2]  Fremont, H. Teaching Secondary Mathematics Through Applications, Ed. Prindle, Weber e Schmidt, 2? edição, 1979, (19.2, p. 309).

 

João Bosco Piíombeira, doutor pela Universidade de Chicago e coordenador das primeiras Olimpíadas Brasileiras de Matemática realizadas pela SBM, é hoje o responsável pelo projeto "Matemática, Comunidade e Universidade", patrocinado pelo SPEC/CAPES/MEC/PADCT junto ao Departamento de Matemática da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde é professor.

 

 

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