José Carlos Putnoki
São Paulo, SP

 

Já faz um bom tempo que o Desenho Geométrico foi banido das nossas escolas de 1 e 2 graus. "Coincidentemente", de lá para cá, a Geometria, cada vez mais, vem se tornando o grande terror da Matemática, tanto para alunos quanto para professores. Com certeza, não se trata apenas de uma coincidência, mas sim, em parte, de uma conseqüência. É evidente que, desde os tempos em que a régua e o compasso freqüentaram os bancos escolares, até os dias de hoje, inúmeros são os fatores que incidiram negativamente no ensino. Mas isso não anula, em hipótese alguma, a defesa que se pretende apresentar.

Antes de mais nada, convém explicar que não se faz aqui um mero discurso saudosista, até porque quem escreve esse artigo também não aprendeu a utilizar os instrumentos euclidianos na escola. Não sou daquela geração. E se hoje leciono Desenho Geométrico é porque em determinado instante, fui quase obrigado a fazê-lo.

Em primeiro lugar, é preciso analisar o próprio título "Desenho Geométrico". Em alguns países (França, Espanha, Suíça, etc.) ele designa mais comumente a Perspectiva e a Geometria Descritiva, não subentendendo, de modo geral, o que aqui chamamos Desenho Geométrico Plano. Ocorre que, naqueles países, o Desenho Geométrico Plano é desenvolvido de forma naturalmente incorporada à Geometria Plana, pelo próprio professor de Geometria. Desde os Elementos, de Euclides, o Desenho Geométrico se apresenta ligado à Geometria de forma indissolúvel, não com esse título, mas com a denominação de Construções Geométricas. É exatamente a reincorporação da régua e do compasso à Geometria que se defende neste texto. A rigor, ensinar Geometria sem esses instrumentos é como dar a uma criança um triciclo sem uma das rodas traseiras. Ela até consegue se locomover, mas muito mal. Estamos é mutilando a Geometria quando a ensinamos como o fazemos hoje, além de abrir mão de ferramentas cujo alcance didático é inesgotável. Convém também lembrar que, quando Euclides elaborou sua Geometria, não era sua proposta a execução dos traçados com régua e compasso, mas o estudo da possibilidade de construir a figura com aqueles instrumentos. Já, didaticamente falando, discutir como construir e, em seguida, construir, são etapas que se completam, sendo a segunda a própria materialização das idéias da primeira.

Vamos examinar alguns exemplos em que a utilização da régua e do compasso é altamente vantajosa.

Na aula que precede a exposição dos critérios de congruência de triângulos, pode-se pedir aos alunos que construam em casa, e recortem, os seguintes triângulos:

1)     L.A.L. (p. ex., 4 cm, 60° e 5 cm)

2)     L.L.L. (p. ex., 6 cm, 5 cm e 7 cm)

3)     A.L.A. (p. ex., 30°, 8 cm e 45°)

4)     l.a.a0. (p. ex., 5 cm, 60° e 45°)

5)     l.l.a. (p. ex., 5 cm, 7 cm e 30°)

Sabemos que as construções de 1 a 4 resultam em congruências, enquanto que a 5 não, necessariamente. Ora, pela própria superposição dos triângulos materializados em recortes, explicam-se de forma convincente os critérios de congruência. O quinto caso é excepcionalmente bom para convencê-los de que nem tudo é critério de congruência. O aluno vê que, com os dados, podem-se construir dois triângulos diferentes.


Além disso, no caso L.L.L., pode-se propor a construção de triângulos impossíveis (por ex., de lados 10 cm, 3 cm e 4 cm, ou, ainda, 10 cm, 6 cm e 4 cm) e já discutir as condições de existência de triângulos (cada lado tem que ser menor do que a soma dos outros dois). Pode-se propor a construção, dando dois ângulos (por ex., 60° e 45°, ou, explorando a impossibilidade, 60° e 150°), plantando já o germe do conceito de semelhança.

Enfim, só com o exemplo da congruência percebe-se o que pode ser feito com o auxílio da régua e do compasso.

Pensando num estágio posterior, mas ainda em construção ae triângulos, sabemos que o triângulo fica determinado por três de seus elementos, sendo que para definir o tamanho é necessário pelo menos um elemento linear. Pensemos, então, apenas nos 3 lados, 3 ângulos, 3 bissetrizes internas, 3 medianas, 3 alturas e os raios das circunferências inscrita e circunscrita. Combinando, como dados, 3 desses elementos, sendo pelo menos um deles linear, abre-se a possibilidade de propor uma quantidade enorme de exercícios. Nesses problemas, o estudante (e, por que não dizer, também o professor) adquire uma grande intimidade com a Geometria.

Assuntos aparentemente estéreis para o aluno, como o ângulo inscrito ou a potência de um ponto em relação à circunferência, têm vastas aplicações nas construções geométricas. O ângulo inscrito gera o arco capaz (fonte de muitos exercícios), a potência de ponto resolve problemas de tangência e muitos outros exemplos de aplicações podem ser dados. Todos eles tornando o ensino da Geometria mais palpável e interessante, colaborando de forma decisiva para uma melhoria de nível e compreensão.
 

discutir como construir e, em seguida, construir, são etapas que se completam, sendo a segunda a própria materialização das idéias da primeira.

 

Uma outra crítica que se pode colocar é a de que algumas boas escolas particulares têm ensinado Geometria Descritiva no grau. Não sou contra a inclusão dessa cadeira, mas uma crítica cabe em dois níveis. 1?) A ordem natural do desenvolvimento é: primeiro, o Desenho Geométrico Plano e, depois, a Descritiva. Ora, pelo que transparece, o primeiro vem sendo explorado de forma tão tímida, que passar para a Descritiva equivale a passar da tabuada do "2" diretamente para a do "9".,Isto é, acaba-se não ensinando nem uma coisa e nem outra. (Esse é o caráter didático.) 2°) Para o estudante que vai utilizar a Geometria Descritiva, o assunto será desenvolvido, futuramente, na faculdade, enquanto que o Desenho Plano, nunca mais. (É esse o caráter de prioridade).

Já que dificilmente o estudo das duas disciplinas cabe na carga horária que se tem atualmente, sugiro que se reflita sobre a possibilidade de dar um desenvolvimento melhor às construções planas, deixando a Descritiva para o grau superior. É claro que essa colocação é do gênero "dentre os males, o menor". O que se precisa, de fato, é de uma mudança na estrutura de ensino.

Para encerrar, deve-se dizer que uma bibliografia para a formação do professor na disciplina discutida é praticamente nula a nível nacional. Mesmo a nível internacional, as melhores obras (para a formação do professor) são de edições antigas e esgotadas. Com alguma persistência, várias delas podem ser encontradas nos "sebos". O leitor vai notar, nessa pequena bibliografia que segue, uma predominância de títulos franceses. A explicação é simples. Entre a segunda metade do século passado e os dias de hoje, os franceses produziram tantas obras ae quilate incomum, que e absolutamente natural que se apresentem em maior número.

 

Bibliografia

Em português

[1] Curso de Desenho Geométrico, Affonso Rocha Giongo. Livraria Nobel S.A., São Paulo. (Com reedições na praça. É quase uma apostila, mas traz elementos interessantes.)

[2] Desenho Geométrico, Benjamim de A. Carvalho. Ao Livro Técnico S.A., Rio de Janeiro, 1969. (Esgotado.)

[3] Curso de Desenho (9 vol.), Carlos Marmo. Editora Moderna Ltda., São Paulo. (Esgotado. Os 6 primeiros volumes são de construções planas.)

[4] Desenho Geométrico, Domingos J. da Silva Cunha. Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1958. (Esgotado.)

[5] Elementos de Geometria e Desenho Geométrico (2 vol. e 3 cad. de ativ.), José Carlos Putnoki. Editora Scipione, São Paulo. (A ser lançado no 2 semestre de 1988. Traz um estudo dos elementos de Geometria precedendo cada capítulo de construções.)

[6] Construções Geométricas, Julius Petersen, traduzido por Samsão Woiler e Hugo Monteiro de Barros Cari. Livraria Nobel, São Paulo, 1963. (Esgotado. Trata-se, talvez, do maior clássico sobre o tema. Julius Petersen influenciou muitos autores de vários países, inclusive do Brasil. Há traduções de seu trabalho para várias línguas. A nível de formação para o professor, é um título indispensável.)

[7] Problemas de Desenho Geométrico, Theodoro Braga. Editora LEP S.A., São Paulo, 1965. (Esgotado. É uma coletânea de exercícios resolvidos na forma de receituário, isto é, não se justificam as construções.)

 

Em outras línguas

[8] Géométrie Plane, André Delessert. Editions SPES, Suisse, 1981. (Em língua francesa. Uma

das propostas mais criativas para o ensino da Geometria.)

[9]Cours de Géométrie Élémentaire, B. Niewenglowski et L. Gérard. Georges Carré et C. Naud, Éditeurs, Paris, 1898. (Esgotado.)

[10]Géométrie, C. Lebossé et C. Hémery. Fernand Nathan, Éditeur, Paris, 1965. (Há um curso para Classe de Second C e outro para Classe de Mathématiques. Obras excepcionalmente boas.)

[11] Problemas gráficos y numéricos de Geometria, D. Manuel Garcia Ardura. Tipografia Artística, Madrid, 1974.

[12] Coursde Géométrie Élémentaire, E. Combete. Félix Alcan, Éditeur, Paris, 1903. (Esgotado.)

[13J Traité de Géométrie, Eugène Rouché et Ch. Comberousse. Gauthier Vilars, Éditeur, Paris, 1935. (Esgotado. Obra de excepcional conteúdo teórico. Essa é a 9? edição, a 1 f data do final do século passado.)

[14] Elementi di Geometria (2 vol.), F. Enriques e U. Analdi. Zanichelli, Bologna, 1984. (Consegue-se importá-lo pela Livraria Italiana, em São Paulo. Não custa pouco, mas essa obra é um verdadeiro clássico da Geometria. Na realidade, essa é uma reedição imperdível. F. Henriques, além de excepcional geômetra e matemático, teve uma vida absolutamente atuante na busca de soluções para os problemas do ensino da Matemática no seu país. Foi um didata brilhante.)

[15] Éléments de Géométrie — par F. J.

[16] Cours de Géométrie Élémentaire — par F. G. -M.

[17] Exercices de Géométrie — par F. J.

[18] Exercices de Géométrie — par F. G. -M.

(O Éléments e o Cours são basicamente o mesmo texto em edições diferentes, sendo o segundo, posterior. Ambos são livros de teoria e os exercícios ali propostos são resolvidos nos Exercices — livro do mestre. Fazendo uma dupla qualquer de teoria e exercícios, consegue-se provavelmente o que de melhor já se escreveu sobre Geometria Elementar. Esses livros, editados por Maison Alfred Mame et fils, Imprimeurs-Éditeurs, são bastante raros, mas ao encontrar um deles deve-se comprá-lo imediatamente. As edições mais completas são de 1912.)

[19] Méthodes de resolution et de discussion des Problèmes de Géométrie, G. Lenaire. Librarie Vuibert, Paris. (A última edição, 15?, é de 1947, mas o livro foi escrito no final do século passado. Ele disputa com o de Julius Petersen o título de primeiro livro a expor metodicamente os problemas de construção. Excelente, mas esgotado.)

[20]Tour d'horizon et méthodes varieés en constructions planes, Louis Long. Librarie Vuibert, Paris, 1947.

[21] Geometric transformation (3 vol.), I. M. Yaglom, traduzido do russo para o inglês por Allen Shields. The L.W. Singer Company. (Consegue-se sua importação através da Livraria Triângulo, em São Paulo.)

[22] College Geometry, Court Nathan Altshiller. Barnes & Noble, Inc., New York, 1952. (Esgotado.)

[23] Cours de Géométrie, par une réunion de professeurs. Librarie Générale, Paris, 1952. (Esgota­do. Há vários níveis de cursos. Os mais interessantes são o Classes de 2?et de le.t o Classes de Mathématiques. Cada um deles é acompanhado do livro do mestre, sendo que o correspondente ao segundo chama-se Problèmes de Géométrie: A história é complicada, mas esses livros são as adaptações dos F. J. e F. G. -M. para os "novos" programas franceses. Simplesmente soberbos.)

 

Observação:  Há muitas outras obras de excelente qualidade,  além das que constam nessa minibibliografia.

 

 

José Carlos Putnoki é professor de Matemática do Cursinho Universitário de São Paulo onde Jota é o seu apelido. Foi músico profissional antes de optar pelo magistério e tem um grande sonho: participar de um partido verde (radical, daqueles que saem a campo para defender a flora e a fauna).