O mundo dos números reais é ordenado?

Manuel H. C. Botelho


Será ordenado o conjunto dos números reais?

Fazer esta pergunta, nas páginas da RPM, pode parecer uma heresia ou, no mínimo, uma blasfêmia.

Acontece, entretanto, que tenho vivido situações tão intrigantes e surpreendentes que começo a achar que os números reais, aliás os mais reais dos reais, que são os números reais dos negócios (alguém duvidará da realidade desses números?) não são ordenados, ou seja, são como os seus parentes, os números complexos, onde não existe uma relação de ordem. (RPM 2, p. 9.)

Vejam estes dois casos reais e julguem depois. Nada de preconceitos e posições dogmáticas, por favor!


 

     Caso n.° 1

Fui a uma farmácia e pedi um tubo de pasta de dentes. Pedi o tamanho pequeno. A balconista avisou:

— No mostruário não tem. Vou mandar pegar no estoque.

E, dizendo isso, gritou para o garoto que tira coisas do estoque:

— Traga um tubo grande de pasta de dentes.

Tentei intervir:

— Não é grande o que eu quero. É o pequeno.

A moça não se perturbou:

— O "pequeno" nós chamamos de grande. O tamanho "médio" nós chamamos "família" e o "grande" nós chamamos "gigante". Logo, o tamanho que o senhor quer não é o pequeno e, sim, o grande.

Peguei o tubo (pequeno, ou grande, já não sei) e paguei. Como paguei muito, também não sei se o cobrado foi o tamanho grande ou o pequeno.

 

 

     Caso n.° 2

Pindamonhangaba, anos 30. Meu tio-avô "Seu Freitas", tinha um empório nessa cidade. Era o único empório da cidade. Chamava-se "Ao Ganha Pouco". Estabelecimento conhecido e respeitado. Todos conheciam os preços do estabelecimento, pois, nessa época, a inflação era muito baixa. Como não sei lidar com mil-réis, falarei em cruzados. Uma das vitrines da loja ostentava o produto "Biotônico Fontoura", ao preço da época, Cz$ 1,50 a garrafa. Fazia meses que era esse o preço. Um dia veio a notícia. Numa outra rua da cidade, inaugurou-se um novo empório, a "Feira Permanente". E, como desgraça pouca é besteira, o novo comerciante pôs, à vista da loja, uma pilha de Biotônico Fontoura, por Cz$ 1,20 a garrafa. Foi um diz-que-diz-que na cidade, que logo chegou aos ouvidos de meu tio-avô. Estavam vendendo mais barato que ele. Meu tio-avô tinha que tomar uma decisão, fazer algo. Ele pensou em mudar o seu preço de Cz$1,50 para um novo valor, digamos, A.

Se o novo preço A fosse maior que Cz$1,20 (preço do novo comerciante), claro que de nada adiantaria.

Logo,  A > Cz$ 1,20 não era a Solução.

Colocar o novo preço A menor que Cz$ 1,20 era mostrar que meu tio-avô fora, no passado, um negociante careiro. Logo.

A < Cz$ 1,20 não era a Solução.

Fazer o novo preço A igual a Cz$ 1,20 era mostrar que ele só alterara o preço pela existência de concorrência.

Logo,  A = Cz$1,20 não era a Solução.

"Teremos, pois, que achar um preço A que supere essas três condições. Como fazer isso?"

Haveria solução dentro do conjunto dos reais?

 

Solução. Seu Freitas colocou, na frente da loja, ostensivamente à frente, duas pilhas de vidros de Biotônico Fontoura. Uma pilha com um preço Cz$ 1,50, outra pilha com o preço Cz$ 1,20. Claro que as duas pilhas com o mesmo produto, mas com preços diferentes, chamavam logo a atenção e os passantes perguntavam o porquê dos dois preços. Seu Freitas não vacilava:

— O senhor quer Biotônico para o seu filho ou para o filho da sua empregada?

Após estas historietas, volto a perguntar:

— Os números reais são ordenados?

 

Nota de Alerta da RPM. "O presente artigo de nosso colaborador MHC Botelho exige crítica e maturidade do leitor, pelo fato de introduzir idéias estranhas e contrárias à ortodoxia dos cânones da Matemática. Onde já se viu pôr em dúvida a ordenação dos reais?". Todavia o Conselho Superior de Censura desta Revista aprovou (decisão não unânime) sua publicação, desde que saísse com essa nota de alerta.

 

Nota da RPM. "O artigo do nosso colaborador MHC Botelho já veio com uma pseudonota de alerta da Revista do Professor de Matemática, falando de um tal Conselho Superior de Censura que nem existe".

Quanto ao fato da apresentação de artigos pouco ortodoxos, estamos livres para discussão, embora no nosso ponto de vista os reais sejam ordenados, pelo menos, na maioria dos casos.

NR. A nota anterior também é de autoria de MHCB e paramos por aqui, não sem antes alertar "apesar das fofocas, os reais são ordenados, mais do que isso, são totalmente ordenados".

 

MHCB.

 

 

Na aula de Matemática

Chico Nery 
       

Quando olhas pra mim...

Os números racionais ficam irracionais,

Os reais, imaginários

E os complexos ficam perplexos.
 

Quando olhas para mim...

O triângulo fica móvel,

O círculo, quadrado

E o quadrado fica reverso.
 

Quando olhas para mim...

Os conjuntos ficam sem elemento,

Os subconjuntos, maiores que os conjuntos

E o Vazio desaparece.
 

Quando olhas para mim...

Os múltiplos ficam primos,

Os primos, irmãos

E todos os números ficam divisíveis.

 

Quando olhas para mim...

Os deltas ficam negativos,

As equações, sem raízes

E as funções ficam sem domínio.
 

Quando olhas para mim...

As derivadas ficam sem limite,

Os gráficos, sem inflexão,

E as tangentes nem se tocam.
 

Quando olhas para mim...

Os poliedros ficam sem faces,

O côncavo vira convexo

E o Teorema de Euler fica sem nexo.
 

Quando olhas para mim...

O sistema fica impossível,

A matriz, redonda

E o determinante se anula.
 

Quando olhas para mim...

O sinal fica sem som,

A aula sem professor

E o aluno bate com o dedo no meu ombro:

— Mestre, a aula acabou.

 

12/9/84

Chico Nery é professor de Matemática do Curso Anglo, em São Paulo.

Chico tem muitas paixões na vida. A sala de aula e a literatura são duas delas. Mas há ainda uma outra: ele se delicia preparando uma macarronada para os amigos.