Geraldo Ávila
Instituto de Matemática — UNICAMP

     Introdução

Em nosso artigo anterior (RPM 11, p. 31) exploramos as fórmulas da área e do volume da esfera, do ponto de vista da variação do raio. Comparando entre si as variações correspondentes dessas grandezas, tiramos algumas conclusões simples e importantes nas aplicações. Lendo aquele artigo, o leitor verá que essas conclusões decorreram da consideração do raio da esfera como grandeza variável e do exame de como variam a área e o volume à medida que o raio cresce.

É de situações concretas como essa que o professor pode extrair, de maneira espontânea e natural, conceitos importantes e muito úteis como os de variável e função. Ilustraremos isto com mais um exemplo concreto bem simples e que, quando examinado do ponto de vista da variabilidade das grandezas envolvidas, dá margem a conclusões interessantes e relevantes nas aplicações.

 

     Um problema de freagem

Comecemos com a formulação de uma questão simples:

Um automóvel, a 32 km/h, é freado e pára depois de percorrer mais 8 metros. Se freado a 60 km/h, quantos metros percorrerá até parar?

Se proposto desta maneira, o aluno poderá pensar que as grandezas aí envolvidas — velocidade V e a distância D percorrida até parar — são direta-mente proporcionais. Mas isto é falso. O certo é que a distância é proporcional ao quadrado da velocidade*}, pelo menos dentro de certos limites de velocidade. Ora, isto precisa ser dito explicitamente no enunciado do problema. Essa lei significa que se D1, D2, D3, ... são as distâncias correspondentes, respectivamente, às velocidades   V1, V2, V3, !..   então


onde k é a constante de proporcionalidade. Com os dados concretos do nosso problema, se tomarmos V1 = 32 km/h, então D1 = 8 m; e se pusermos V2 = 60 km/h, teremos a equação

para determinar a distância D2, correspondente à velocidade de freagem V2 = 60 km/h. Resolvendo a equação, obtemos

isto é, D2 = 28 metros. (Observe que não há necessidade de reduzir as velocidades de km/h a m/h ou m/s; o importante é que elas sejam todas expressas na mesma unidade. A distância procurada, evidentemente, virá expressa em metros, como a outra distância dada.)

(*) Mais adiante examinaremos detidamente esta lei.
 

Vale a pena reparar no aumento da distância de freagem, que passou de 8 para 28 metros — mais do que triplicou — quando a velocidade foi de 32 para 60 km/h — nem sequer duplicou. Mas, desse cálculo isolado, nada mais podemos concluir. Se quisermos saber o que ocorre a outras velocidades, podemos fazer novos cálculos, usando o mesmo raciocínio e, é até um exercício interessante, calcular as distâncias de freagem correspondentes a várias velocidades, como 40, 60, 80, 100, 120, 140 km/h. Mais do que isso, podemos construir uma tabela numérica de velocidades e distâncias correspondentes e uma representação gráfica, marcando as velocidades num eixo horizontal e as distâncias num eixo vertical. Isto permitirá compreender melhor o que está acontecendo com a distância de freagem à medida que a velocidade aumenta.

O procedimento que propomos, de repetir cálculo após cálculo, com diferentes valores da velocidade, é um passo no sentido de "variar" a velocidade V e observar os valores correspondentes da distância de freagem D. Melhor que todos os cálculos, porém, é contemplar, em sua plenitude, a relação de dependência dessas duas grandezas V e D, pois só assim estaremos permitindo que V assuma qualquer valor numérico (positivo) e, em conseqüência, só assim poderemos examinar a maneira como D varia em função de V. Para isto, devemos notar que a proporcionalidade (1) significa o mesmo que a equação

(2)                                                                D = kV2,

onde D — convém repetir — é a distância de freagem correspondente à velocidade V. Sejam V = V0 > 0 e D = D0 um par de valores tais que . Por exemplo, V0  pode ser  32km/h  e D0 = 8 m .  Observemos agora o que acontece quando multiplicamos V0 por um número qualquer c. Obtemos um valor correspondente D tal que, segundo a eq. (2),

Mas kV02 = D0 , de sorte que D = c2D0 . Vemos assim que multiplicando-se V0 por c, D0 deverá ser multiplicado por c2. Por exemplo, se multiplicarmos V0 por 2, 3, 4, 5, etc, D0 será multiplicado por 4, 9, 16, 25, etc, respectivamente. Indicamos isto no quadro seguinte:

V

V0

2V0

3V0

4V0

5V0

D

D0

4D0

9D0

16D0

25D0

Vamos fazer um gráfico, marcando os valores de V num eixo horizontal e os correspondentes valores de D num eixo vertical. A curva assim obtida — deve-se dizer aos alunos — é uma parábola. Se escolhermos V0 = 32 km/h e D0 = 8 metros, o quadro de valores acima passa a ser o seguinte:

V

32

64

96

128

160

D

8

32

72

128

200

O leitor deve observar atentamente o gráfico e os quadros para bem entender o efeito da velocidade de um automóvel na distância em que ele ainda percorre até parar, desde o momento em que o motorista aplica os freios. Quando a velocidade duplica, triplica, quadruplica, etc, a distância de freagem fica multiplicada por 4, 9, 16, etc, o que mostra o perigo das altas velocidades.

É evidente, da discussão acima, que a equação D = kV2 nos dá uma visão muito mais ampla e clara de como as variáveis V e D estão relacionadas do que quaisquer cálculos numéricos isolados. E isto, justamente, porque estamos contemplando, nessa equação, a relação de interdependência funcional das variáveis Fe D, já que agora V pode assumir qualquer valor positivo, sendo assim uma variável independente; e D assume também todos os valores positivos, como variável dependente, pois cada um de seus valores é determinado por algum valor de V, ou ainda, cada valor de V determina um valor de D,  o que explica chamarmos de D de variável dependente.

 

     Um começo sobre funções

Exemplos como este que discutimos aqui servem para mostrar que o estudo das funções, na sua fase mais elementar, poderia iniciar-se, e com grande vantagem, na sexta série, logo após o (ou simultaneamente ao) estudo das equações. De fato, ao estudar equações a duas incógnitas, é da maior conveniência ensinar sua representação gráfica. Começando com exemplos simples, como x y = 0  ou  y = x;  x - y + 1 = 0  ou  y = x + 1;  y = 2x;  y = 3x/2,  y = 2x + 1, etc, o aluno pode ser levado, por um processo gradual de aprendizado, a descobrir, por si próprio, que toda equação do primeiro grau a duas incógnitas tem por representação gráfica uma linha reta. A equação escrita na forma y = mx + n sugere, naturalmente, a idéia de "variar x arbitrariamente" e procurar os valores correspondentes de y. Ora, nisto estão contidas as noções de variável independente e variável dependente numa relação funcional. E, é claro, outros exemplos simples de funções (não lineares), como as que se encaixam no tipo genérico y=kxr, podem e devem ser tratados, sempre com os gráficos correspondentes.

O ensino da Matemática — é bom insistir — deve ser feito, sempre que possível, a partir de exemplos concretos e interessantes, que permitam motivar os conceitos e preparar o terreno para as definições formais. E isto deve ocorrer de maneira gradual, pois o aprendizado não acontece de uma só vez, mas por um processo de continuado amadurecimento. Assim, as noções relacionadas com funções devem ser introduzidas aos poucos e gradativamente, à medida que vão sendo solicitadas pelo próprio andamento do aprendizado. Isto significa também que devemos evitar a introdução de conceitos que não serão logo utilizados, pois o aluno não terá seu interesse despertado por coisas cuja utilidade não lhe é manifesta. Por isso, no estágio que estamos considerando (sexta série), não há por que falar em domínio, contradomínio, função injetora ou bijetora, coisas que devem ficar para bem mais tarde.

 

     Lei empírica e conservação de energia

Logo após a formulação do problema de freagem do automóvel, dissemos que a distância D era proporcional ao quadrado da velocidade, isto é, D = kV2, segundo a eq. (2). Sim, mas donde vem essa lei? — pode perguntar o leitor. É o que explicaremos agora.

De um lado, a eq. (2) pode ser vista como "lei empírica", obtida pela observação cuidadosa dos dados da experiência. Isto se consegue com a construção de uma tabela de valores correspondentes de V e D, seguida de tentativas de adequar os dados da tabela a uma equação. Achar a equação certa é tarefa análoga à de quem procura uma camisa que lhe sirva ou um sapato adequado a seus pés. Foi assim que Snell ou Descartes descobriram a lei da refração da luz; e foi assim também que Kepler descobriu as três leis pianeianas que levam seu nome, em particular a terceira lei, que explicamos na RPM 9, pp. 4 e 5.

Mas a eq. (2) pode ser deduzida do princípio de conservação da energia, numa situação idealizada. De fato, sabemos que a energia cinética de um automóvel, de massa m e velocidade V, é igual a mV2/!. Por outro lado, se os freios são aplicados de modo a produzir no automóvel uma força constante F, contrária ao movimento, então o trabalho dessa força é o produto dela pe­lo deslocamento D do automóvel, desde o início da freagem até sua parada completa. Esse trabalho tem por efeito anular a energia cinética do automóvel, de sorte que



 

donde segue a eq. (2) com  k = m/2F.

 

     A regra do guarda rodoviário e um teste da revista Quatro Rodas

O Professor Jorge Augusto Bacha, da Escola Estadual Dona Castorina Cavaleiro, de Campinas, contou-nos que já exerceu a profissão de guarda rodoviário antes de se tornar professor de Matemática. E, segundo nos explicou, o guarda rodoviário tem uma regra para calcular a distância de freagem de um veículo, que é a seguinte: eleva-se a velocidade ao quadrado e divide-se o resultado por 100. Assim, um carro a 80 km/h necessitaria de 802 -s- 100 = 64 metros para parar. É claro que essa regra do guarda rodoviário corresponde a tomar  k = 1/100  em nossa eq. (2).

A revista Quatro Rodas costuma publicar tabelas dos testes que realiza com diferentes veículos. Uma dessas tabelas, referente ao Fiat Uno, quando de seu lançamento, é a seguinte:

V

40

60

80

100

120

D

8,2

18,1

31,8

50,3

71,4

Isto equivale, praticamente, a tomar k = 1/200 na eq. (2), pois então obtemos a seguinte tabela, muito próxima da anterior:

V

40

60

80

100

120

D

8

18

32

50

72

O leitor deve observar que com o dobro do valor usado para construir esta última tabela (pois 1/100 = duas vezes 1/200), o guarda rodoviário obtém valores duplicados das distâncias correspondentes ao Fiat Uno. Um exagero? Talvez não, se levarmos em conta que ele está preocupado com segurança, imaginando um motorista que, subitamente, sem estar preparado para uma freagem encontra-se numa situação de ter de parar rapidamente o carro. Neste caso, é preciso levar em conta outros fatores, como o tempo decorrido entre o instante em que ele primeiro percebe a necessidade da freagem e o momento em que começa a pressionar o pedal do freio. E será que ele pressionará o freio tanto quanto o motorista de uma pista de provas?

 

O porquê do horário de verão

Imaginemos um mostrador de relógio com as 24 horas do dia, como se vê na figura abaixo, no qual representamos nossos hábitos de dormir. Embora as pessoas tenham costumes diferentes, podemos imaginar uma situação ideal, mais ou menos a média do que realmente acontece, com as pessoas indo dormir às 22 horas (10 da noite) para se levantar às 6 da manhã — um período de 8 horas de sono. Ora, como é fácil compreender, por simples observação da figura, o período de 8 horas mais escuro da noite não é esse, mas sim o que vai das 20 horas (8 da noite) às 4 da madrugada — simetricamente disposto em relação à meia-noite. Este sim é que deveria ser utilizado como período de dormir, se efetivamente desejássemos dormir nas horas de maior escuridão. (Aliás, é precisamente isto o que fazem os animais que dormem durante a noite, num gesto de sabedoria instintiva: eles utilizam um período simétrico em relação à meia-noite.)

Agora é fácil entender o porquê do horário de verão: o período de 10 da noite às 6 da manhã, num relógio adiantado uma hora, corresponde, efetivamente, ao período de 9 da noite às 5 da manhã, de forma que adiantar o relógio uma hora torna mais simétrico, em relação à meia-noite, o período que utilizamos para dormir. Em conseqüência, o horário de verão faz com que economizemos horas escuras quando acordados.

Convém observar que o horário de verão só faz sentido nas regiões mais afastadas do equador terrestre, visto que, quanto mais longe do equador, mais longos se tornam os dias no verão e mais curtas as noites. Mas não é isto o que acontece em lugares como Belém ou Manaus, onde as durações dos dias e das noites sofrem variações mínimas durante o ano. É por isto que os habitantes desses lugares se opõem à adoção do horário de verão.