Geraldo Ávila
IMECC-UNICAMP

     Introdução

Em nosso artigo na RPM 10 — Arquimedes, a Esfera e o Cilindro — mostramos como foram descobertas as fórmulas do volume V e da área A da esfera em termos do raio R:

Estas fórmulas servem, evidentemente, para calcular o volume e a área de uma esfera de raio R, mas fosse esta sua única serventia, certamente seriam muito limitadas. Na verdade elas vão muito além, como veremos no presente artigo: através de considerações simples, encarando o raio R como variável independente, obteremos um resultado aparentemente banal sobre a variação relativa de V e A como funções de R, o qual, no entanto, tem implicações surpreendentemente interessantes e de largo alcance em Ciência Aplicada. O professor encontrará aqui ilustrações simples para aliviar seus alunos daquele senso de frustração freqüentemente exarado na clássica pergunta: "Professor, mas pra que serve isto?".

 

     A produção de calor no Sol

Vamos imaginar um corpo esférico em cujo interior existem fontes produzindo calor continuamente, tendendo a aumentar a temperatura do corpo. Este, todavia, não se torna mais quente porque o calor escapa pela sua superfície na mesma proporção em que é produzido no seu interior, de sorte que a temperatura permanece a mesma em cada ponto do corpo. É exatamente isto o que se passa com os animais de sangue quente, em particular conosco, os humanos: os processos metabólicos produzem calor, o qual escapa pela pele do animal na mesma proporção em que é produzido internamente, de sorte que a temperatura do animal permanece constante ao longo do tempo.

Vamos considerar a situação mais simples de um corpo esférico como o Sol, que produz calor internamente e o irradia pela sua superfície. Sabemos que a quantidade qm de calor produzida por cada grama da massa solar por segundo é dada por qm = 4,5 x 10-8 calorias(*). Será que esse número representa uma produção muito grande de calor ou muito pequena?

Para responder a essa pergunta, imaginemos que uma pessoa de 70 quilos (= 70 x l03 gramas) produzisse calor na mesma proporção que o Sol. Em um dia (= 24 horas = 24 x 60 x 60 segundos) essa pessoa estaria queimando 4,5 x 10-8 x 70 x 103 x 24 x 602 = 272 calorias. Ora, isso é muito pouco, pois sabemos que uma pessoa de 70 quilos queima, em média, cerca de 3000 calorias por dia, portanto mais de dez vezes a produção calórica do Sol.

Como se explica isso? Como pode um corpo tão quente como o Sol estar produzindo calor a uma taxa tão baixa, inferior dez vezes à do corpo humano? A resposta se encontra nas fórmulas (1), como veremos a seguir.

 

     A razão V/A

É claro, das fórmulas (1), que tanto o volume V quanto a área A de uma esfera crescem com o crescer de seu raio R. Isso pode ser visto graficamente na Fig. 1, que exibe os gráficos do volume e da área como funções do raio. Esses gráficos revelam não só o crescimento de V e de A, mas também o fato de que V cresce mais depressa do que A à medida que o raio cresce. De início, para valores pequenos de R, o volume é menor do que A; é exatamente igual a A quando R = 3; e passa a ser maior do que para R > 3.

Esse crescimento relativo de  V e A também pode ser visto considerando-se a razão   V/A. De (1) segue-se que

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(*) Veja o Apêndice adiante para o cálculo de qm  e outras taxas.

isto é, a razão do volume V para a área A é uma função linear do raio R, que cresce à medida que este cresce, como ilustra a Fig. 2. Isto significa que Vcresce mais rapidamente do que A. Se R assume os valores R = 3, 6, 9, 12, etc, V será igual, respectivamente, a A, 2A, 3A, 4A, etc. Dito de maneira mais concreta, se R = 3 cm, V = A, isto é, o número de cm3 em V é igual ao número de cm2 em A; s = 6 cm,   V = 2A,  ou seja, para cada cm2 em  A   teremos 3 cm3 em V; se R = 9 cm, = 3A, significando que para cada cm2 em A temos agora   3 cm3   em V;  e assim por diante.

Vamos comparar uma esfera do tamanho do Sol, de raio R = 695 300 km, volume V e área A, com uma pequena esfera de raio r = 24 cm, volume v e área a.  Então, como R = 69,53 x 109 cm, teremos, de acordo com (2),

Assim, para cada cm2 da superfície solar existem

de cm3 de volume interno, enquanto, no caso da esfera menor, para cada cm2 de sua superfície existem apenas 8 cm3 de volume interno. Isso explica por que, embora a produção de calor no interior do Sol ocorra a taxas muito baixas (qm 4,5 x 10-8 ; qv 6,5 x 10-8. Veja o Apêndice), mesmo assim a quantidade de calor qa que sai por cada cm1 de sua superfície por segundo é bem alta; qa 1500 calorias; afinal, esta quantidade de calor provém de 23,2 bilhões de cm3 internos! (Observe que  qa = 23,2 x 109 x qv.)

 

     Um resultado geral

Vamos explicar agora como as fórmulas (1) e (2) se generalizam para corpos semelhantes quaisquer. Lembramos a definição de semelhança, já dada na RPM 2, páginas 16 e 17.

Dois corpos (figuras espaciais) F e F0 dizem-se semelhantes quando os pontos de F estão em correspondência biunivoca com os pontos de F , de tal maneira que se P e Q são pontos quaisquer F e P0 e Q0  seus respectivos correspondentes em F0 , então PQ/P0Q0 onde k é uma constante, chamada a razão de semelhança de Fe F0.

Por exemplo, duas esferas quaisquer são semelhantes entre si, a razão de semelhança sendo dada pelo quociente de seus raios, seus diâmetros, duas cordas ou dois segmentos correspondentes quaisquer. De igual maneira, são semelhantes dois cubos ou dois tetraedros regulares quaisquer, a razão de semelhança sendo dada pela razão de duas arestas correspondentes quaisquer.

Sejam F e F0 dois corpos semelhantes e R e R0 os comprimentos de dois segmentos correspondentes em F e F0 respectivamente. Sejam ainda V e Kq os respectivos volumes e A e Ao as respectivas áreas de F e Fq. Valem então os seguintes resultados(*):

dos quais obtemos as fórmulas abaixo, análogas às fórmulas (1):

onde Cv = V0 / R03  Ca = A0 / R02V  são constantes (que dependem, todavia, da escolha de P0 e Q0 em F0) como 4/3 e 4 em (1). Das fórmulas (4) obtemos, em seguida, o análogo às relações (2):


onde  C é a constante  C = R0A0/V0    As fórmulas (4) e (5) têm interpretações e conseqüências inteiramente análogas às anteriores dadas em (1) e (2) respectivamente. Em particular, os gráficos de V e A como funções de R são praticamente os mesmos da figura 1, e bem assim o gráfico de V/A é linear como o da figura 2. A única diferença é que agora os gráficos de V e A se cruzam quando R = C, sendo V < A para R < C e V > A para R > C. Como antes, também aqui o volume V de um corpo F (semelhante a F0) cresce mais rapidamente que sua área A. Se R assume os valores C, 2C, 3C, etc, V será igual a A, 2A, 3A, etc. respectivamente; e o número de cm3 de volume que corresponde a cada cm2 de área do corpo vai crescendo, assumindo os valores 1, 2, 3, etc.

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(*) As demonstrações desses resultados podem ser feitas por meios elementares, como no caso de áreas de figuras semelhantes (veja, p. ex., Lima, Elon L., Áreas e Volumes. Coleçâo Fundamentos da Matemática Elementar da SBM, p. 24.)

 

     Aplicações

São muitas e variadas as aplicações das relações (4). Consideremos primeiro alguns casos de produção de calor no interior de um corpo e a saída desse calor pela superfície, seja por radiação, seja por condução. O que se passa é que, à medida que o calor é produzido no interior do volume, digamos a uma taxa de qv calorias por cm3 por segundo, a temperatura do corpo tende a aumentar, com o que aumenta também a taxa qa , isto é, o número de calorias que escapa por cm2 da superfície do corpo por segundo. A temperatura do corpo vai aumentando até que se atinja o equilíbrio ou estado estacionário, isto é, até que o calor produzido internamente iguale o calor que escapa pela superfície, o que se traduz pela equação
 

Daqui obtemos

 


No caso do Sol, o calor produzido internamente à taxa qv teve como primeiro efeito elevar a temperatura e a taxa qa até que a equação (6) ficasse satisfeita. Atingiu-se assim o estado estacionário em que hoje se encontra o Sol, com a temperatura da superfície em 6 000° absolutos (= 5 727° centígrados). A taxa  qa  é então dada pela primeira equação em (7).

Uma situação diferente ocorre quando encaramos a taxa qa como fixada de antemão. Portanto, fixada também está a temperatura (da superfície) do corpo. É este o caso de um animal de sangue quente, como um rato, um beija-flor ou um elefante. A segunda equação em (7) permite então calcular a taxa qv. Ora, quanto maior o animal, tanto menor será sua área A comparada com seu volume V, portanto tanto menor será o quociente A/V e a taxa qv. Ao contrário, quanto menor for o animal, tanto maior será sua área A em relação ao seu volume V e, conseqüentemente, maior também será o quociente A/V e a taxa  qv.

Essas considerações explicam por que os animais, em geral, têm um metabolismo (medido pela taxa qv) tão menos intenso quanto maior o seu tamanho. Um rato ou um beija-flor precisam consumir muito mais alimento em relarão a seus volumes e produzir calor a uma taxa qv muito mais elevada que ui elefante, daí seus metabolismos serem muito mais intensos que o do elefante. Como se vê, a expressão "comeu feito um passarinho", na verdade, significa que comeu muito e não pouco!

A equação (6) tem uma interessante aplicação na tecnologia do radiador — o sistema de resfriamento do motor do automóvel. Os primeiros radiadores funcionavam à base de água sob pressão normal e, em conseqüência, a temperatura máxima que eles podiam atingir era 100°C. Isto fixava também o valor máximo da taxa qa, que, como já notamos antes, é função crescente dessa temperatura (da superfície do radiador). Ora, não sendo possível aumentar mais essa taxa, para que o produto Aqa fosse efetivamente igual a todo o calor Vqv que devia ser extraído do motor (veja a equação (6)), restava o expediente de aumentar a área do radiador. Durante muito tempo, desde o início da tecnologia do automóvel, esta foi realmente a única coisa que se podia fazer. Mas a solução estava longe de ser satisfatória. Os motores "ferviam" e a água evaporava, exigindo que se adicionasse mais água. E como isto nem sempre era possível (numa estrada, por exemplo), muitas vezes o motorista tinha de parar e deixar o motor esfriar...

A necessidade de melhorar a eficiência do radiador tornava-se mais premente à medida que a eficiência dos motores exigia o aumento da rotação, o que implicava um aumento de produção interna de calor (membro esquerdo da equação (6)). Não sendo sempre possível aumentar a área A, era preciso aumentar a taxa qa (veja o membro direito da equação (6)). A primeira providência nessa direção foi a de selar parcialmente o radiador. Isso permitia que a pressão interna da água atingisse um valor máximo superior à pressão normal (de 1 atmosfera). Em conseqüência, a água também atingia uma temperatura de ebulição superior aos 100°C, aumentando assim a taxa qa (que é função crescente da temperatura). Atingidas essa pressão e temperatura máximas, a tampa do radiador, por um sistema de molas, se levantava, dando vazão ao excesso de pressão por um orifício lateral. Com esse sistema, que esteve em uso até uns dez anos atrás, o radiador trabalhava com uma folga de ar logo abaixo da tampa. Se "completado" com água até a tampa, o próprio funcionamento do radiador se encarregava de eliminar a água em excesso e recobrar a folga desejada. Muitas pessoas não sabiam disto e, em cada posto de gasolina por que passavam, "completavam" desnecessariamente a água do radiador...

Mais recentemente, muitos automóveis estão vindo com o radiador totalmente selado, o que permite um aumento ainda maior da temperatura T da água e, conseqüentemente, da taxa qa(*), aumentando assim a eficiência do radiador. A válvula de escape foi substituída por um reservatório lateral, para onde se desvia o excesso de água proveniente da ebulição.

Muitas outras aplicações interessantes da razão da área para o volume de um corpo existem, algumas das quais já foram mencionadas na RPM 5, página 55, onde o leitor encontrará também referências ao interessante livro de H. Fremont e a um artigo do famoso geneticista J. B. S. Haldane.___________
(*) Pois esta, segundo a chamada Lei de Stefan-Boltzman, é proporcional a T4.

 

     Apêndice

A quantidade de calor produzida no interior do Sol é calculada em termos da quantidade de calor que de lá nos chega aqui na Terra. Esta, por sua vez, é medida por instrumentos especiais colocados em satélites, de sorte que tais medições se façam sem a interferência da atmosfera terrestre, que absorve e reflete parte da radiação solar. Antes da existência dos satélites, esses instrumentos eram levados às camadas superiores da atmosfera por foguetes ou balões. E antes dos foguetes ou balões, a radiação solar era calculada a partir de medidas feitas na superfície terrestre, levando em conta as parcelas absorvidas e refletidas pela atmosfera.

Pois bem, graças a essas medições, sabe-se que a quantidade de calor que chega à Terra por segundo e por cm2 (perpendicularmente aos raios solares) é q, =  0,032 calorias. Sejam R o raio do Sol e D a distância da Terra á Terra ao Sol. Consideremos duas esferas concêntricas, de raios   R   e   D, uma representando o Sol e a outra passando pela Terra. Sejam a e E as áreas determinadas nessas esferas por um cone de vértice no centro das esferas, como ilustra a figura 3. Então, se qa designa a quantidade de calorias que sai de cada  cm2 da superfície solar por segundo, teremos qa = qt. Por outro lado,  R2 = /D2, e estas duas últimas equações nos dão

Substituindo agora os valores

qt = 0,032,    R = 6 953 x 107 cm    e    D = 1 495 x 1010 cm

obtemos:

ou seja, qa 1500 .

Seja agora qm o valor médio do número de calorias produzidas por cada

grama de massa solar por segundo. Evidentemente, como equilíbrio entre o calor produzido internamente e o que sai através da superfície, teremos Mqm = Aqa, onde M é a massa do Sol, aproximadamente 2x1033 gramas. Obtemos então, com as devidas substituições,

 

ou seja, qm 4,5 x 10-8 .

Finalmente vamos calcular qvque é o valor médio de calorias produzidas em cada cm3 do volume solar por segundo. Temos, em vista das segundas equações em (7) e (2),

donde o resultado desejado:   qv 6,5 x 10-8.

 

SBM + USP + SPEC

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