Esta seção está de luto. Perdemos um dos nossos primeiros colaboradores, o colega e professor João Affonso Pascarelli. Ele foi, por mais de 25 anos, professor na USP e, em quase todos esses anos, dedicou-se, paralelamente, ao ensino no segundo grau. Em grande parte deste período, foi professor no Colégio Santa Cruz, em São Paulo, SP, onde exerceu também funções de diretoria e coordenação.

 

Quando a SBM nos indicou para estudar a viabilidade da RPM, ele foi um dos primeiros colegas que consultamos. Desde aí, contamos sempre com sua colaboração, baseada em sua longa experiência. Alguns leitores podem reconhecer sua letra nas muitas cartas que ele respondeu, sempre com dedicação e paciência, aliadas à competência e, às vezes, assinadas apenas por: "Revista do Professor de Matemática".

 

 

 Ainda em seu último ano de vida, quando lutava contra a leucemia, que o levou do nosso convívio, no mês de julho último, ele se dedicou à implantação do Centro de Aperfeiçoamento do Ensino de Matemática (CAEM) junto ao IME-USP e atendeu a várias perguntas de nossos leitores.

Por ocasião da missa que foi celebrada quando se deu o falecimento, uma de suas ex-alunas, Ana Amélia Inoue, leu a seguinte carta, que acabara de escrever, para dizer da sua admiração e da sua dor.

"Todos nós temos sempre um grande mestre na vida. Sempre é alguém que soube, com arte e amor, nos iniciar nos mistérios do conhecimento. Mas não só isso. Sempre é alguém que soube, com arte e amor, transcender o próprio conhecimento e nos iniciar em alguns dos muitos mistérios da vida. São sempre artistas, sem dúvida. São sempre magos. Alquimistas que formam... e transformam, que nos mostram que aí, na capacidade de transformação, está o poder num sentido mais profundo da palavra. São pessoas que ensinam mais do que a matéria... Ensinam o espírito. Pessoas que despertam a nossa capacidade divina de admirar, de respeitar, de reconhecer uma verdadeira sabedoria.

São, de certa forma, deuses, pois se eternizam na alma da gente.

São, no mais profundo e verdadeiro sentido da palavra, mestres.

Você, Pasca, foi assim... Um mestre, um mago, um alquimista. Um sábio como tão bem o definiu o Flávio Di Giorgi, outro grande mestre.

Aprendi muitas coisas com você, João... Coisas que transcendem de longe a lógica matemática... Aprendi a respeitar o conhecimento e reconhecer a sabedoria. E aprendi a admirar os sábios e a respeitar as suas respectivas sabedorias.

Você me ensinou a aprender. E, talvez, este tenha sido o ensinamento mais precioso da minha vida.

Tal qual um parteiro, você conseguia extrair da gente essa nossa misteriosa capacidade de aprender. E, como um grande feiticeiro, fazia-nos acreditar e descobrir que éramos capazes de ser, também, feiticeiros, descobridores de grandes mares.

...Quantas sutilezas estão contidas no mistério da aprendizagem... A maior delas talvez seja a simples fé de que o aluno vai aprender. ...E a fé move montanhas... A sua moveu muitas... Você sempre foi exigente, numa atitude de confiança e respeito à nossa sabedoria e à nossa condição de aprendiz. Lembro de uma prova difícil que você deu para a minha classe, que gerou reclamações fervorosas. E você disse: 'O que vocês querem? Uma prova para burros?' ...A gente era adolescente, queria o reconhecimento incondicional da nossa força, capacidade e inteligência, é claro... E aí... o que era então que estávamos fazendo ali? Ah... éramos aprendizes aprendendo... Aprendendo a crescer.

Lembro-me das suas aulas, João Affonso... Não podia chegar atrasado, não podia sentar na janela, não podia pôr os pés na cadeira, não podia fumar. A gente era adolescente e você era corajoso. Porque pra gente, o desafio era um alimento importante. Desafiar e ser desafiado era vital. Era através disso que a gente crescia... Mas aí, a gente se perguntava o que estava acontecendo, se a gente estava sendo covarde e não queria o desafio ou estava sendo reprimido por forças autoritárias. Tecíamos hipóteses porque havia algo ali que fazia a gente ser pontual, não sentar na janela, não fumar e não pôr os pés na cadeira. Excepcionalmente. Algo que a gente um dia descobriu que era autoridade e não autoritarismo, respeito que se impõe por si e não repressão ou covardia.

Outras variáveis faziam parte desta sua equação para que a gente conseguisse chegar nessa solução, na sua tradução, Pasca. A música que você amava, a literatura, a sua afetividade, o seu bom humor. Foi uma grande surpresa, quando num churrasco de final de ano, era você quem sa­bia a letra de todas as músicas que apareceram. Você não cantou porque disse que era desafinado, mas ficou ali soprando as letras pra gente cantar e sugerindo músicas: 'Toca aquela...' E foi aí que eu aprendi a letra de 'Folhas Secas', do Nelson Cavaquinho, que você me ensinou, desta vez, indignado com a minha ignorância.

Pois é, mestre... há sempre muito a aprender... Cada dia mais a gente descobre isso. Ainda que, às vezes, as equações nos pareçam insolúveis, como a vida e a morte... Mas a gente, um dia, já aprendeu a resolver equações difíceis e complicadas, não é mesmo?

Tenho um certo alento no coração, quando olho e vejo que você está inteiramente presente dentro de mim, todos os dias, quando estou com as crianças com quem trabalho. E quando eu me flagro tendo esta mesma fé absoluta de que aquela criança tem capacidade de aprender e vai crescer. ...E que por isso vale a pena investir, vale a pena viver... e morrer. Porque entre a vida e a morte, existe a obra. E a sua Pasca, é de um valor infinito e eterno, e por isso, divino. Não se acaba, não se mata, não se esquece. Mas brota e floresce!!

Tenho muita saudade de você... muita, muita! E também uma tranqüilidade que me vem da lembrança de você nestas últimas vezes que a gente conversou, neste último ano. Sereno... como a dizer que também se aprende a morrer em vida.

Não o esqueço, você sabe. ...
Você faz muita falta..."
Ana Amélia Inoue Julho/87.