Herança mineira
(Uma história matemática,
de leitura proibida em Minas Gerais.)

Manoel Henrique Campos Botelho

Daniel e eu trabalhávamos em uma mesma firma de Engenharia. Ele era originário de uma família mineira de boas posses.

Parece que eles moravam em uma fazenda. Um dia veio o convite: ir passar, com Daniel e mais dois colegas, um fim de semana na sua fazenda. A cidade da fazenda de Daniel era no sul de Minas, próxima, bem próxima dos limites do estado de São Paulo. Não se pense, entretanto, que, devido à proximidade da terra paulista, diminuam os hábitos e as tradições mineiras. Ao contrário, as tradições das Alterosas são guardadas com obstinada fé nessas paragens. Saímos cedo, no sábado. Já nos limites da propriedade, Daniel diminuiu a velocidade do carro e contou-nos algo, com aspecto sério e discreto:

— Na fazenda, vocês vão conhecer meu pai, minha mãe e meus irmãos: Pedro, Roberto, Helena e Vera. Só que minha mãe não é minha mãe. Minha mãe verdadeira morreu de parto quando eu nasci. Eu era o primeiro filho e meu pai, já dono da fazenda, ficou sozinho aqui, neste sertão, com um bebê de dias. O jeito foi chamar tia Suzana, irmã mais moça de minha mãe, para cuidar de mim. E ela veio e cuidou. Passados dois anos, meu pai casou-se com minha tia Suzana e com ela teve o Pedro, o Roberto, a Helena e a Vera. Fui sempre tratado como filho pela minha tia e a chamo de mãe. Eu a adoro, e ela me adora e a mesma coisa com meus irmãos. Para mim, ela é minha mãe e meus meio-irmãos são meus irmãos plenos. Por tudo isso, aqui em casa temos um lema: "todos por um, um por todos".

A história nos comoveu como nos comoveu a chegada à fazenda. Toda a família estava na varanda nos esperando. Foi uma festa.

O almoço foi aquele com o qual se sonha em uma tradicional fazenda mineira: tutu de feijão com linguiça, couve e ovos estrelados e, na sobremesa, melado e compotas. Tudo com coisas da própria fazenda. Foram momentos inesquecíveis. Domingo de manhã, fomos à cidade e circulamos pela praça principal. Domingo à tarde, a dura despedida, depois de um al­moço servido com leitão pururuca e doce de leite na sobremesa. À noite, chegávamos a São Paulo. Eu tinha finalmente encontrado uma família feliz, protegida das maldades da civilização, cercada pelas sagradas montanhas mineiras.

Não voltei a essa fazenda e o que vou contar daqui para diante conto como Daniel nos contou. Passados alguns anos de nossa visita, chegou uma terrível notícia: falecera a mãe de Daniel. Foi uma doença grave e rápida. O pai de Daniel, viúvo então pela segunda vez, não aguentou. Já tinha mais de setenta anos e, com a morte da companheira, passados vinte dias, morreu — de um enfarte. Duas mortes em menos de um mês. Daniel pediu licença temporária no serviço e foi para a fazenda tomar conta de tudo. Afinal, ele era o filho mais velho e não nos esqueçamos do lema da família: "todos por um, um por todos".

Era preciso fazer os inventários dos dois falecidos. Felizmente, eles tinham um amigo advogado, Dr. Alexandre, que cuidara de vários outros casos deles e de parentes próximos. Dr. Alexandre foi até a sede da fazenda para fazer uma reunião com os herdeiros e começar a organizar a documentação dos inventários. Quando chegou, Daniel, como filho mais velho, orientou o advogado na questão da partilha:

— Dr. Alexandre, nossa fazenda tem 300 alqueires mineiros, três açudes, dois acessos rodoviários, uma sede, uma piscina e cinco herdeiros. Não dá para dividir essas coisas por cinco e nossos pais não gostariam que retalhássemos ou vendêssemos a fazenda. O problema é esse, queremos saber como fica a partilha. Acho que será uma partilha teórica, ficando cada um dos cinco filhos com a quinta parte do total. Como somos unidos e o lema de nossa família é "todos por um, um por todos", não haverá problema na administração da fazenda.

Dr. Alexandre ouviu o discurso e falou:

— Um minuto, que estou fazendo um cálculo com umas frações ordinárias e nunca fui forte em Aritmética.

Frações ordinárias*. Dr. Alexandre já era algo velho, mas não parecia estar esclerosado. Por que, então, ele falava em frações ordinárias?

Cada um dos irmãos olhava para o outro surpreso. Aí, Dr. Alexandre falou:

   Ouvi que vocês não querem vender ou retalhar fisicamente a fazenda. Vamos, então, fazer a divisão ideal, ou seja, a fazenda fica de todos e cada um tem uma parte, uma fração teórica.

   Exatamente — falou uma das irmãs.
— Cada um com uma quinta parte.

Aí, Dr. Alexandre voltou às frações ordinárias e, para surpresa geral, declarou:

— Pelo meu cálculo de frações ordinárias, e se eu estiver certo, não é 1/5 para cada um.

Pedro, o segundo dos irmãos, surpreso, falou:

— Dr. Alexandre, se o senhor não tem habilidade para frações ordinárias eu tento Mas não acho que se precise de frações ordinárias para ser resolver tão simples problema. Somos cinco irmãos do mesmo pai, e senil temos a mesma mãe, temos pelo menos a mesma avó. Cinco irmãos criados juntos, amada juntos e solidarizados por um forte amor familiar. Qual o problema? Cem dividido pn cinco ainda dá 20%, até aqui nas Gerais onde tudo é diferente.

Dr. Alexandre só ouvia, e, seguro de si sentenciou com uma gélida segurança:

Aqueles números estrambólicos deixara! todos surpresos.

Dr. Alexandre fez um desenho e explicou

— Com o primeiro casamento do pai metade da fazenda ficou dele e metade da sul esposa. Quando morreu a mãe de Daniel.a parte dela (1/2) passou diretamente para Daniel. Quando o pai de Daniel se casou pela segunda vez, sua metade da fazenda virou 1/4 pois tia Suzana (sua segunda esposa) ficou meeira (1/4). Com a morte de tia Suzana, seus quatro filhos teriam a quarta parte, ficando cada um com 1/16 da fazenda. Com essa morte, Daniel nada herdou. Com a morte do paios cinco filhos dividem a parte dele. Logo, para Daniel, ficou:

 

 

 

 

e o mesmo para cada um dos outros três. Verifiquem a soma:

 

 

Dr. Alexandre, que não era muito hábil, finalizou dizendo:

— Daniel é o herdeiro principal, tem mais de 50% de tudo.

Pedro, então, pediu a palavra:

— Dr. Alexandre, desculpe-me, mas seus números são irracionais! (Nota do Revisor de Matemática — Os números do Dr. Alexandre podem ser acusados de tudo menos de serem
irracionais.)

Helena, uma das irmãs, não se conteve:

— Dr.   Alexandre,   seus   números   são inimagináveis!  (Nota do Revisor de Matemática — Desconheço a categoria números inimagináveis. Se ela estiver se referindo a números imaginários, este também não é o caso.)

O irmão Roberto atacou de sua vez:

— Dr. Alexandre, seus números transcendem a qualquer bom senso! (Nota do Revisor de Matemática — Roberto, Roberto, se você soubesse o que são números transcendentes você não diria a bobagem que disse.)

E o diálogo ia seguindo nesse nível de lesa Matemática quando Daniel, o protegido pelos números do Dr. Alexandre, falou:

— Fui criado pela minha tia, que para todos os efeitos foi minha verdadeira mãe. Meus irmãos são meus irmãos de verdade. Tudo aqui foi semre e igualitário e nosso lema é o já conhecido, e sou de opinião que a justiça é dividir tudo por igual...

Foi um momento de rara emoção. Ouviram-se palmas e até algumas lágrimas chegaram aos olhos. Mas Daniel não terminara...

— Todavia, antes de tomar uma decisão definitiva, quero saber a opinião de minha esposa, Priscila, sobre esses números do Dr. Alexandre. Vou telefonar a ela.

A ligação telefônica foi feita e Daniel voltou, algo bamboleante, com o parecer de Priscila:

— Acho, digo, ela acha, que os números do Dr. Alexandre são, digamos assim, são números racionais...

Nossa história termina por aqui e também termina por aqui a unidade dessa família. A herança foi realmente dividida, conforme os números do Dr. Alexandre e a acusada de separar a família foi Priscila, a única não-mineira do grupo. Agora, fica a questão: quem estava com a razão?

Claro que Priscila estava com a razão, pois 44/80 e 9/80 são rigorosamente números racionais, pois são o quociente de dois números inteiros. Agora, se os números são justos ou são honestos, isso deixo à consideração dos leitores...


 

RPM x Estatística

Já suplantamos as mais otimistas previsões estatísticas quanto à devolução dos questionários anexos à RPM 10. Cerca de dez mil assinantes, de um total de 23 mil, já responderam. Isto supera os 20% previstos pelas estatísticas, mas cremos que há ainda leitores que gostariam de continuar recebendo a RPM e que não devolveram seus questionários. Ainda há tempo.

Como foi anunciado, este número está sendo enviado somente aos que devolveram o questionário e aos novos assinantes. Aos demais estamos enviando uma carta, pedindo que nos devolvam o questionário ou, em caso de impossibilidade, que nos escrevam confir­mando o interesse em continuar recebendo a RPM, bem como nos comunicando qualquer alteração que deva ser feita na etiqueta de endereçamento.

Já tivemos oportunidade de ler algumas boas sugestões de nossos leitores. Não foi pos­sível, por enquanto, fazer o levantamento geral das respostas aos questionários e sua análi­se. Daremos, no futuro, notícias dela aos nossos leitores.