Voltando a falar sobre dízimas
 

Sugestões e perguntas
devem ser enviadas a

Elon Lages Lima
Instituto de Matemática Pura e Aplicada
Estrada Dona Castorina, 110 22460 Rio de Janeiro, RJ

Já escrevemos duas vezes sobre este tópico (RPM 2, p. 6 e RPM 8, p. 19). Além disso, a redação da Revista, no número 7, página 59, deu uma prova sucinta da regra para achar a geratriz de uma dízima periódica, isto é, para obter uma fração ordinária que, ao ser transformada em decimal, reproduz a dízima considerada. ("Dízima" é sinônimo de "fração decimal".)

Restam porém alguns fatos que ainda não foram esclarecidos aqui. Procuraremos agora completar a discussão analisando-os.

Usualmente, as propriedades das dízimas periódicas são estabelecidas a partir do algoritmo de divisão prolongada, usado para transformar uma fração ordinária em decimal, no qual se acrescentam sucessivos zeros ao dividendo para continuar o processo de divisão. Os resultados obtidos são os seguintes:

1. Uma fração ordinária irredutível p/q, quando transformada em decimal, gera uma fração decimal exata (finita) ou uma dízima periódica. O primeiro caso ocorre quando q é da forma 2m 5n e o segundo, quando q divisível por algum número primo diferente de 2 ou 5.

2. Quando o denominador q é primo com 10, a dízima periódica gerada pela fração irredutível p/q é simples, isto é, o período começa no primeiro algarismo decimal.

3. Se o denominador q for divisível por 2 ou por 5 e, além disso, por outro número primo, a dízima periódica gerada pela fração irredutível  p/q composta, isto é, a parte decimal começa com alguns algarismos não periódicos, seguidos dos algarismos periódicos. O número de algarismos não periódicos é igual ao maior expoente de uma potência de 2 ou de 5 pela qual  q divisível.

Seguiremos um caminho diferente do usual para chegar a esses resultados

Tomaremos como ponto de partida os dois lemas abaixo.  

 

 

Lema l. Todo número natural q, primo com 10, tem um múltiplo cuja representação decimal é formada por noves.  

Demonstração: Há uma infinidade de números, tais como 9, 99, 999, etc., formados apenas por algarismos 9. Quando divididos por q, esses números deixam restos que vão de  0  a  q - l, ao todo um número finito de restos possíveis. Logo, existem dois números formados por noves, os quais divididos por q deixam o mesmo resto. A diferença entre esses dois números é, por um lado, divisível por q e, por outro lado, um número formado por uma série de noves seguidos por uma série de zeros. Tem-se então

n . q = 99...90...0 = 99...9 x 10m.  

 

Assim, q divide o produto 99...9 x 10m e, como é primo com 10m , concluímos que q divide 99...9.

Observação. O lema l continua válido (com a mesma demonstração) se, em vez de 9, tomarmos qualquer algarismo decimal diferente de 0. Nossa preferência por 9 será justificada logo mais.  

Lema 2. Todo número natural q tem um múltiplo cuja representação decimal é formada por uma série de noves seguidos por uma série de zeros. O menor múltiplo de q desta forma termina com um número de zeros igual ao maior expoente de uma potência de 2 ou 5 pela qual q é divisível.  

 

Demonstração: Temos q = 2a . 5b . q', onde q' é primo com 10. Para fixar idéias, suponhamos a > b. Então a é o maior expoente de uma potência de 2 ou 5 pela qual q é divisível. Seja n o menor número natural tal que n . q' = 99...9. Então o menor múltiplo de q formado por noves seguidos de zeros é:

5a-b . n . q = 10a . n . q' = 99...90...0 (com a zeros no final)
Desses lemas resulta imediatamente o

Teorema. Toda fração irredutível p/q é equivalente a uma fração cujo denominador tem uma das formas I0...0, 99...9 ou 99...90...0. Ocorrem os seguintes casos:

Nos casos 1) e 3), se o numerador n não terminar em zero, o número de zeros do denominador é igual ao maior dos expoentes a ou b .

Demonstração: Basta multiplicar o numerador e o denominador da fração p/q pelo mesmo número, escolhido de modo que o novo denominador tenha a forma desejada, o que é possível em virtude dos lemas anteriores.

Na prática, suponhamos dada a fração 2/37. Para obter uma fração do tipo n/99...9 equivalente a ela, devemos efetuar a divisão prolongada de 99 por 37, acrescentando NOVES ao dividendo até obtermos um resto igual a zero! Isto é sempre possível, em virtude do primeiro lema. Vejamos:
 

Se a fração dada for, por exemplo, 3/260, estamos no caso 3 e facilmente o reduzimos ao anterior. Temos 260 = 22 x 5 x 13. Começamos com 3/13. A divisão prolongada (acrescentando-se noves ao dividendo) nos dá:  

Vejamos agora o que acontece quando se procura transformar a fração ordinária  p/q em decimal. Em primeiro lugar, se

Neste caso, obtemos uma decimal exata, ou finita.

Em seguida, suponhamos que o denominador q da fração p/q seja primo com 10. Pelo teorema acima, p/q é equivalente a uma fração da forma n/99.. .9. Sem perda de generalidade, podemos supor que a fração dada é própria. Se p/q for imprópria, separamos a parte inteira para colocá-la antes da vírgula.

Temos a fração n/99...9, cujo denominador tem m algarismos iguais a 9. Sendo ela própria, seu numerador n é um número de, no máximo, m algarismos. Completando-o com zeros à esquerda, podemos admitir que n tem exatamente m algarismos. Com esta convenção, podemos afirmar que, transformando n/99...9 em fração decimal, obtemos a dízima periódica 0, nnn...

Por exemplo, 5/9 = 0,555..., 5/99 = 0,50505..., 13/999 = 0,013013013.. etc.

A prova dessa afirmação se baseia na fórmula que dá a soma dos termos de uma progressão geométrica ilimitada. Segundo ela, se então

Em particular, temos

Finalmente, se a fração própria irredutível p/q tiver o denominador q divisível por 2 ou por 5 e, além disso, por outro primo diferente destes, então p/q é equivalente a uma fração do tipo n/99...90...0, onde podemos admitir que o numerador n não termina em 0. Neste caso, ao transformar p/q em decimal, obtemos uma dízima periódica composta na qual a parte não periódica tem tantos algarismos quantos são os zeros do denominador acima. Para ver isto, basta escrever (supondo que sejam m zeros):

e recair no caso anterior. Evidentemente, n/99...9 agora pode não ser uma fração própria mas sua parte inteira tem, no máximo m algarismos (já que a fração original era própria). Então, completando a parte inteira de n/99.. .9 com zeros à esquerda, podemos admitir que ela tenha m algarismos e estes serão precisamente os algarismos não periódicos. Este caso fica bem mais fácil de entender com alguns exemplos concretos, como os que mostramos abaixo:

O problema inverso, de "achar a geratriz", é óbvio no caso de uma dízima periódica simples. Basta inverter as igualdades do tipo

lendo-as da direita para a esquerda.

Para uma dízima periódica composta, a regra é mais elaborada. Como foi dito na RPM 7 (p. 59), "a geratriz de uma dízima periódica composta é um fração cujo numerador é igual à parte não periódica seguida de um período menos a parte não periódica; seu denominador é um número formado por tantos noves quantos são os algarismos periódicos, seguidos de tantos zeros quantos são os algarismos de um período." Assim, por exemplo:

A prova disto é a mesma que a RPM publicou naquela ocasião:

se x = 0,57421421... então

Se q for primo com 10, sabemos que a fração própria irredutível p/q gera uma dízima periódica simples. O que se pode dizer a respeito do número de algarismos do período? Tomamos o menor número da forma 99.. .9 que seja múltiplo de q. Digamos que o número de noves aí seja m. Então temos

n . q = 99...9 = 10m - l  donde 10m = n . q + 1.
 

Evidentemente, m é o número de algarismos do período. E a última igualdade mostra que m é também o menor expoente tal que 10m dividido por q deixa resto l. Esta caracterização do número de algarismos do período não muito interessante porque não é prática. (Sua maior vantagem é mostrar que tal número depende apenas do denominador). Mas conduz a uma informação valiosa, que é a seguinte. Em Teoria dos Números costuma-se indicar com símbolo (q) o número de inteiros inferiores a q e primos com q. Então se q for primo, (q) = q — l. Noutros casos temos (9) = 6, (6) =  2, (21) = 12. Prova-se então que se q for primo com 10 então deixará resto l quando for dividido por q. Daí resulta que, se continuarmos chamando de m o menor número natural tal que 10m deixa resto l quando dividido por q (ou seja, m é o número de algarismos periódicos da fração decimal igual a p/q) então m é um divisor de (q).

É fácil provar que (q) é múltiplo de m. Dividindo (q) por m, seja a o quociente e r o resto. Temos (q) = am + r, com . Segue-se que:

Como deixam resto l quando divididos por q, segue-se que o mesmo ocorre com 10r. Mas, sendo r < m, isto só acontece se for r = 0.

Assim, o número de algarismos periódicos da dízima gerada por p/q é um divisor de (q). Por exemplo, temos (13) = 12, (23) = 22 e 1/13, 1/23 geram dízimas com 6 e 22 algarismos no período, respectivamente. Outro exemplo: a fração 1/29 gera uma dízima cujo período tem um número de algarismos que divide (29) = 28. Tal número deve portanto ser l, 2, 7, 14 ou 28. O leitor está convidado a decidir qual desses palpites é correto.

Um outro resultado é o seguinte: já que o número de algarismos periódicos da dízima gerada pela fração própria irredutível p/q depende apenas do denominador q, vemos que, se tal número for igual a q 1, os algarismos periódicos serão os mesmos, seja qual for o numerador. Motivo: na divisão continuada de p por q devem aparecer os números 1, 2, ..., q - 1 como restos. Depois que o primeiro deles ocorrer, os demais se sucedem na mesma ordem cíclica. O numerador p influi apenas para saber qual é o primeiro algarismo periódico. (Isto responde a uma pergunta de Joel F. de Abreu feita na RPM 9, p. 29 e complementa uma observação de Lucien J. Thys em Cartas do Leitor desta Revista.)

Para encerrar, uma observação sobre o lema l. Ele pode ser demonstrado como conseqüência da fórmula da geratriz de uma dízima periódica simples. Com efeito, dado q primo com 10, desenvolvemos a fração l / 9 q como dízima periódica simples e tomamos a geratriz dessa dízima, obtendo uma fração do tipo n/99... 9. Por conseguinte l / 9 q = n / 99...9. Daí resulta que, seja qual for o algarismo a, podemos obter um múltiplo de q da forma aa...a. Originalmente eu pensava em apresentar esse lema como aplicação do processo de achar a geratriz de uma dízima periódica. Depois resolvi inverter a ordem e deduzir as propriedades das dízimas a partir do lema. A demonstração do lema l foi-me comunicada por Ralph Costa Teixeira.

Outra alternativa para demonstrar o lema l consiste em considerar as potências de 10 em vez dos números 9, 99, 999, etc. Como há infinitas potências e apenas um número finito de restos possíveis quando as dividimos por q, segue-se que há duas potências, digamos 10p = 10 m+p que divididas por q deixam o mesmo resto. Logo 10 m+p - 10p = 10p (10 m - l) é múltiplo de q. Como q é primo com 10, segue-se que 10 m - l = 99...9 é múltiplo de q.