As "cadeias" do professor Bloch Histórias que ficam na memória  

F!ávio Wagner Rodrigues
ime-usp
 

Nas conversas que freqüentemente mantemos com colegas, sobre problemas do ensino da Matemática, é comum surgirem relatos de experiências vividas por cada um de nós, quase todas elas envolvendo formas de apresentação de determinados tópicos de Matemática elementar.

Atendendo a sugestão de alguns desses colegas, vou procurar reproduzir aqui uma dessas experiências que vivi e cujo personagem principal é o Professor Abrão Bloch, que então lecionava no cursinho Anglo-Latino (hoje, Curso Anglo Vestibulares).

O meu primeiro contacto com a Teoria dos Determinantes aconteceu na 2a série do 2° grau (na época, 2° Científico), lá pelos idos de 1952. O professor era bastante razoável, mas de modo algum poderia ser classificado como um grande entusiasta da profissão que escolhera. Assim sendo, ele nos transmitia de maneira correta, mas um tanto mecânica, um amontoado de definições e propriedades que recebíamos passivamente, sem emoções. Como o assunto foi iniciado já perto do final do ano letivo, não houve tempo suficiente para que fosse completado e, uma vez respondidas as questões da prova final, ele foi devidamente esquecido.

Somente dois anos mais tarde é que voltei a reencontrá-lo. Na primeira a aula sobre o assunto, o Professor Bloch dirigiu-se ao quadro negro e nele escreveu três sistemas de equações que, não de maneira exata (afinal já se passaram mais de 30 anos) mas, dentro do mesmo espírito, reproduzo a seguir.

Convidou então um aluno para que fosse ao quadro e resolvesse os três sistemas pelo método da adição. Os resultados encontrados foram os seguintes:  

Sistema I : x = 3 e y = 2
Sistema II : 0 = 0
Sistema III: 0 = - l (?)  

O professor pediu então que comentássemos o que acabara de acontecer no quadro negro. Como permanecêssemos em silêncio, ele falou:

— Acho que os senhores concordarão comigo que o mesmo método, aplicado em idênticas condições a esses três sistemas, produziu resultados bastante diversos. Com relação ao sistema I, o método forneceu um resultado que facilmente podemos verificar ser uma solução do sistema. Quando aplicado ao sistema II, o método nos contou algo que já sabíamos: 0 = 0. Finalmente, no sistema III, ele nos conduziu a uma igualdade que sabemos não ser verdadeira.

— Quem os senhores acham que são os culpados por esse comportamento tão distinto dos três sistemas, frente ao método da adição? É claro que o x e o y são inocentes pois eles são os mesmos nos três sistemas. Por exclusão, os culpados devem ser os números que aparecem do lado direito da igualdade e ao lado do x e do y. Vamos portanto separá-los do x e do y que não têm nada com a história, e, como culpados, devem ser presos. Vamos colocá-los na "cadeia", prendendo-os entre duas barras. Assim, por exemplo, para o sistema III, a "cadeia" incompleta (só dos coeficientes de x e y) e a "cadeia" completa ficariam assim:  

— Essas "cadeias" vão ser definidas mais tarde, com o nome de matrizes. Nas próximas aulas nós vamos estudar propriedades de matrizes com o objetivo de utilizá-las para discutir, classificar e, quando possível, resolver sistemas de equações lineares.

O efeito dessa introdução nos estudantes foi altamente positivo e as aulas seguintes foram dadas num ambiente bastante diverso daquele que eu encontrara dois anos antes. Em defesa do meu professor do colegial, poder-se-ia argumentar que o tempo foi insuficiente para que ele pudesse mostrar aos alunos as aplicações mais interessantes da teoria. Mas, mesmo que o tempo tivesse si­do suficiente, o eventual interesse que ele poderia despertar com essas aplicações chegaria muito tarde para aqueles que desanimaram no início.

Ao nosso ver, essa pequena história mostra bem a importância de que o professor conheça a fundo o assunto que vai transmitir e além disso, tenha também um grande entusiasmo pelo exercício da profissão que escolheu. São esses dois fatores que fazem com que, quase inconscientemente, ele esteja sempre procurando novas formas de transmitir aos seus alunos, não apenas a informação correta, mas também uma pequena parcela do entusiasmo que ele sente.