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Severino
de Souza relata na RPM 9 (9) um dos muitos episódios interessantes
sobre a vida e a obra de Arquimedes. No presente artigo trataremos de
outro episódio, referente às descobertas que Arquimedes fez sobre a área
e o volume da esfera. Plutarco,
um escritor grego do 1° século d.C., é autor de um livro chamado
"As Vidas dos Homens Ilustres" (8). No capítulo referente à
vida de Marcelo, o general romano que comandou o saque de Siracusa, ele
dedica boa parte de sua narrativa ao grande geômetra grego. Em
particular, conta Plutarco que de todas as descobertas que Arquimedes fez,
a que o geômetra mais apreciava era a relação de áreas e volumes de
um cilindro e da esfera nele contida ((8), p. 276). Mais precisamente,
consideremos uma esfera de raio R, inscrita num cilindro
circular reto, de altura 2R e cuja base tem raio R (Fig. l).
Então
o volume do cilindro é 3/2 do volume da esfera, e a área total do
cilindro também é 3/2 da área da esfera. Ainda segundo Plutarco,
Arquimedes teria pedido a seus parentes e amigos que quando morresse
mandassem colocar sobre sua sepultura um cilindro contendo uma esfera, com
uma inscrição da proporção acima referida. Cícero, quando exercia funções
de magistrado romano na Sicília, encontrou uma lápide contendo uma
esfera inscrita num cilindro. Como ele mesmo conta, julgou ter achado o túmulo
de Arquimedes e cuidou de restaurá-lo. Segundo o autor Howard Eves ((5),
p. 89), há pouco mais de vinte anos, em 1965, durante uma escavação
para construir um hotel em Siracusa, uma escavadeira deu com uma pedra com
a mesma figura antiga de um cilindro contendo uma esfera. Assim, o túmulo
de Arquimedes teria sido novamente encontrado nos tempos modernos. Mas
desta vez faltou alguém com a clarividência de um Cícero e, ao que
parece, esse túmulo está agora definitivamente perdido...
A
relação de áreas e de volumes do cilindro e da esfera nele contida,
como descrevemos acima, figura como um corolário das Proposições 33 e
34 de um dos livros de Arquimedes, intitulado "Sobre a Esfera e o
Cilindro, parte I". Esse livro está vazado em estilo rigoroso, num
encadeamento preciso de postulados, definições e teoremas. Aliás,
esse é o estilo das demais obras de Arquimedes que chegaram até nós e
que são conhecidas desde a Idade Média. Tão grande é a preocupação
com o rigor e com a estruturação lógica das demonstrações, que o
leitor sequer percebe como o autor teria chegado a suas descobertas. Aliás,
isto é freqüente em Matemática, pois os caminhos da descoberta quase
sempre são diferentes dos processos da demonstração. (A propósito, veja
(4).) Em conseqüência disso, os estudiosos das obras de Arquimedes muitas
vezes manifestaram surpresa diante de seus escritos, sentindo-se
frustrados por não conseguirem entender como ele fez muitas de suas
descobertas. Houve até quem suspeitasse que ele usasse algum processo de
descoberta que propositadamente escondera da posteridade. ____________________
J.
L. Heiberg (1854-1928), ilustre professor dinamarquês de Filologia,
prestou inestimável serviço à História da Matemática, pelas suas
notáveis pesquisas
sobre as obras gregas antigas. Esse homem vasculhou praticamente toda;
Pois
bem, Heiberg já havia publicado as obras de Euclides e Arquimedes no
final do século passado, quando veio a saber, pela leitura de um artigo
numa revista especializada, da existência de um manuscrito encontrado
no Mosteiro do Santo Sepulcro em Jerusalém e posteriormente levado para
Constantinopla. O artigo contava que o manuscrito de Jerusalém — um
"códice", para usar terminologia própria — continha escritos
religiosos, mas por baixo do texto religioso havia outra escrita, de
natureza matemática. Por tudo o que leu sobre o códice, e pelo seu
conhecimento de obras antigas, Heiberg começou a suspeitar que esse códice
contivesse, por baixo da leitura religiosa, alguma obra de Arquimedes. E não
deu outra coisa. Ele foi a Constantinopla, onde examinou o documento,
estudou tanto o original quanto as fotografias que dele tirou; O
manuscrito encontrado em Jerusalém, e levado para Constantinopla, é um
palimpsesto, isto é, um pergaminho usado para nele se escrever várias
vezes. Convém lembrar que o pergaminho era um material caro. Era e é.
Hoje nós dispomos do papel, tão barato que dele abusamos muito, num
condenável descaso com a Ecologia. Mas imagine, leitor, se você
dependesse de pergaminho para escrever!... Certamente não iria jogar
fora um que tivesse sido usado, mas cuidaria de raspá-lo
("palimpsesto" significa "raspado novamente") e polir
sua superfície para usá-lo de novo. Por aí dá para imaginar o trabalho
de detetive que teve Heiberg para decifrar o texto subjacente. É
realmente admirável que ele tenha conseguido ler as quase 200 páginas
do códice! Não fosse a competência de Heiberg e talvez até hoje, ou
mesmo para sempre, o novo livro de Arquimedes permanecesse ignorado!
Mencionemos, por fim, que o texto
O novo
livro de Arquimedes, dado a conhecer por Heiberg em 1906, é conhecido
como "O Método", justamente porque nele o geômetra grego
descreve um "método mecânico" para investigar questões
matemáticas.
Arquimedes
tinha o costume de enviar suas obras aos sábios de Alexandria,
prefaciando-as com cartas a esses sábios. Seu livro, "O
Método", contém como prefácio uma carta a Eratóstenes de
Alexandria, a qual começa assim: Arquimedes a Eratóstenes,
Saudações. Enviei-lhe
em outra ocasião alguns teoremas descobertos por mim, meramente os
enunciados, deixando-lhe a tarefa de descobrir as demonstrações então
omitidas... Vendo em você um dedicado estudioso, de considerável
eminência em Filosofia e um admirador da pesquisa matemática, julguei conveniente escrever-lhe para explicar as peculiaridades de um
certo método pelo qual é possível investigar alguns problemas de
Matemática por meios mecânicos... Certas coisas primeiro se tornaram
claras para mim pelo método mecânico, embora depois tivessem de ser
demonstradas pela Geometria, já que sua investigação pelo referido
método não conduzisse a provas aceitáveis. Certamente é mais
fácil fazer as demonstrações
quando temos previamente adquirido,
pelo método, algum conhecimento das questões do que sem esse
conhecimento... Estou convencido de que ele será valioso para a
Matemática, pois pressinto que outros investigadores da atualidade ou
do futuro descobrirão, pelo método aqui descrito, outras
proposições que não me ocorreram. É
oportuno notar, a propósito das palavras finais da citação acima, que
o chamado "método dos indivisíveis", inventado no século
XVII, e que deu origem ao Cálculo Diferencial e Integral, é muito
parecido com o antigo "método mecânico" de Arquimedes.
Tanto um quanto outro carecem de uma fundamentação sólida, mas
contêm os ingredientes que facilitam as descobertas e que, no século
XVII, foram decisivos para grandes avanços da Matemática. Devemos
refletir sobre estas coisas para bem apreciar os traços de um gênio. No livro "O Método", Arquimedes explica várias de suas descobertas, mas aqui vamos nos cingir apenas ao caso da esfera. Ele procede da seguinte maneira: Sejam ABCD um círculo como ilustra a Fig. 2, com diâmetros perpendiculares AC e BD; AFG um triângulo (retângulo em A) isósceles, com base FG e altura AC; e EFGH um retângulo. Girando esta figura em torno do eixo CC' obtemos: uma esfera, gerada pelo círculo ABCD; um cone, gerado pelo triângulo AFG; e um cilindro, gerado pelo retângulo EFGH. Seja MN uma reta no plano da Fig. 2, perpendicular a AC, cortando este segmento no ponto Q. Como QP = AQ e o triângulo OA Q é retângulo, temos: QP2 + QO2 = AQ2 + Q02 = AO2 Por outro lado, o triângulo OAC é retângulo em O e OQ AC, logo AO2 = AQ • AC. Então, QP2
+
Q02 =
AQ • AC,
donde obtemos, notando
que QM =
AC e tomando A C' =
A C,
Portanto,
Esta
relação é agora interpretada como traduzindo o equilíbrio de pesos
numa alavanca QC' com fulcro em A. De fato, pela lei da
alavanca (dada pelo próprio Arquimedes em seu livro "Sobre o
Equilíbrio de Figuras Planas"), a relação acima nos diz que os
círculos de raios QP e QO , quando transferidos
para C', equilibram o círculo de raio QM localizado em Q.
(Nesse raciocínio estamos imaginando os pesos dos círculos
proporcionais às suas áreas.) Até aqui o raciocínio matemático é
perfeitamente rigoroso, mas agora vem a parte heurística do argumento;
consideramos o cilindro como união infinita dos círculos de raio QM,
Q variando de A até C; e analogamente para a esfera e
o cone. Remontamos a esfera e o cone no extremo C' da alavanca
(Fig. 3) e concluímos(*) que esses sólidos devem equilibrar o cilindro
com centróide no extremo
proporcionais a seus
volumes.) Então, sendo , os volumes da esfera, do cone e do
cilindro respectivamente, teremos:
Figura 3 Figura 4 , ______________ Arquimedes já sabia que Ci = 3C0 (resultado este que ele atribui a Eudoxo na mesma carta-prefácio a Eratóstenes citada acima). Substituindo este resultado na equação anterior e simplificando, vem: C0 = 2Ve Mas como CG = 2TD (veja a Fig. 2), segue-se que o volume C0 é 8 vezes o volume do cone obtido por rotação do triângulo ABD, como ilustra a Fig. 4, isto é: , onde R é o raio da esfera. Daqui e de C0 = 2Ve,
resulta finalmente a fórmula do
volume da esfera:
Terminada
a "demonstração" acima, referente ao volume da esfera,
Arquimedes faz o seguinte comentário: Deste
teorema, segundo o qual o volume da esfera é quatro vezes do cone
tendo por base um círculo máximo da esfera e altura igual ao raio
da esfera, eu concebi a idéia de que a superfície da esfera é
quatro
vezes a de um de seus círculos máximos; pois, a julgar pelo fato
de que a
área do círculo é igual à de um triângulo que tem por
base a circunferência altura igual ao raio, vejo que, do mesmo
modo, o volume da esfera é igual ao do cone com base igual à superfície
da esfera e altura igual ao raio. Este
trecho encerra um notável raciocínio analógico. Segundo Aaboe ([1]
p. 124), "este é o primeiro e um dos mais preciosos exemplos
de ousada analogia na História da Matemática". Vale a pena
analisar detidamente o raciocínio que leva Arquimedes a concluir
que a área da esfera é "quatro vezes a de de seus círculos máximos...",
isto é, .
Ele compara a situação da esfera relativamente ao cone com a situação
do círculo relativamente a um triângulo tendo por base a circunferência
e altura igual ao raio. Ora, este último fato é a conclusão a que
chegamos quando imaginamos o circulo decomposto um número muito
grande de setores iguais como ilustra a Fig. 5. Juntando dos esses
setores lado a lado, é fácil ver que a soma de suas áreas é
igual à
área de qualquer triângulo com base
e altura R. (Arquimedes demonstrou este
fato rigorosamente em um outro de seus livros, intitulado "A
Medida do Círculo".) Motivado
pela equivalência do círculo com o triângulo, Arquimedes infere
que a esfera também equivale a um cone, segundo a parte final da
citação acima. (Decerto ela estava imaginando a esfera decomposta
em um grande número
de setores cônicos, como imaginava o círculo decomposto em
setores triangulares.) Aí reside também sua justificativa para
concluir que a superfície da esfera é quatro vezes a da base
daquele cone menor (ABD) da Fig. 4, já que ele mostrou que
o volume da esfera é quatro vezes o volume do cone.
Figura 5 O raciocínio
de Arquimedes é realmente muito interessante e merece ser
analisado detidamente. Vale a pena ler e reler suas próprias
palavras com vagar para apreciar a riqueza de pensamento do
grande geômetra.
Devemos
notar que em seu livro "Sobre a Esfera e o Cilindro, parte
II", Arquimedes demonstrou rigorosamente, pelo método
chamado de exaustão e dupla redução ao absurdo(*), os
resultados sobre o volume e a superfície da esfera. Como dissemos
antes, os raciocínios que descrevemos aqui Arquimedes os
considerava muito válidos como instrumentos de descoberta, mas
que deveriam ser posteriormente suplementados com as demonstrações
rigorosas. É
costume deduzir a fórmula do volume da esfera, na escola de 2°
grau, pelo chamado Princípio de Cavalieri, como se pode
ver em (7), cap. 6; e em (6), p. 199 e seguintes. E o leitor que
analisar o método mecânico de Arquimedes e o procedimento que
utiliza o Princípio de Cavalieri há de notar uma grande semelhança
entre eles. Queremos
mencionar, por fim, que Arquimedes nunca escreveu as fórmulas
do volume e da área da esfera, como de resto nunca escreveu fórmula
alguma. Não há, em todos os seus livros, uma única fórmula, porque a
Matemática Grega era essencialmente geométrica. As relações
métricas
eram sempre expressas na forma de proporções, como na Fig. l. Como
já foi explicado em outra oportunidade (3), era assim porque, ao
resolver a crise de fundamentos do século V a.C., Eudoxo criou a
teoria das proporções, tornando óbvia a necessidade dos números
irracionais. Embora a solução fosse brilhante, por evita os números,
ela acabou confinando a Matemática nos limites da Geometria sem dúvida
uma das principais causas de estagnação da Matemática na
antiguidade.
_______________
Que é a Medalha Fields e que tem Arquimedes a ver com ela? John Charles Fields (1863-1932) foi um matemático canadense, professo da
Universidade de Toronto. Participou ativamente como um dos
principais organizadores do Congresso Internacional de Matemática
de 1924 em Toronto. A propósito, cabe mencionar que esses
congressos internacionais vêm-se realizando desde 1897. A cada
quatro anos ocorre um desses congressos, em localidades diferentes,
como o campeonato mundial de futebol. Pois bem, quando do congresso
de 1924, o Professor Fields propôs que fosse criado um premio a ser
concedido, em cada congresso, aos matemáticos que mais se tivessem
destacado pelas suas pesquisas. Esse prêmio começou a ser
concedido, na forma de uma medalha de ouro, a partir do congresso de
1936. Ele é hoje o prêmio de maior prestígio em Matemática,
conhecido como "Medalha Fields", embora isto contrarie o
expresso desejo do Professor Fields, segundo o qual o prêmio
deveria ter "caráter internacional e tão impessoal quanto
possível, sem ligação com nomes de qualquer país, instituição
ou pessoa". Reproduzimos,
a seguir, o anverso e o reverso da Medalha Fields para que o leitor
veja com seus próprios olhos onde os matemáticos do século XX
foram buscar a pessoa e o fato que eles decerto consideram o
paradigma de Matemático e o símbolo de sua ciência: Arquimedes, a
Esfera e o Cilindro.
Referências (1) Asger Aaboe: Episódios da História Antiga da Matemática,
Publicação SBM, 1984.
(2) Geraldo Ávila: Arquimedes, o Rigor e o Método, Matemática
Universitária, n? 4 (Dezembro de 1986).
(3) Geraldo Ávila: Eudoxo, Dedekind, Números Reais e Ensino da
Matemática, RPM 7 (1985).
(4) Geraldo Ávila: Geometria e Imaginação, RPM 3 (1983).
(5)
Howard Eves: Greul Moments in Mathemalics before 1650,
Mathematical Association of América, 1980.
(6) Imenes, Trotta e Jakubovic: Matemática Aplicada, vol. l,
Editora Moderna.
(7) Elon Lages Lima: Áreas e Volumes, Publicação SBM.
(8) Plutarco: As Vidas dos Homens Ilustres, vol. 3, Editora das
Américas, São Paulo, pp. 268 a 280. Edição em inglês na coleção
"Great Books of lhe Western Worid" da "Enciclopaedia
Britannica Inc.", onde figura como vol. 14, pp. 252 a 255.
(9) Severino de Souza: A rquimedes e a Coroa do Rei, RPM 9
(1986).
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