Irrelevâncias  

Paulo Ferreira Leite
Instituto de Matemática e Estatística – USP
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Nestes dias em que tanto se discutem as relações e as dicotomias entre a matemática pura e a matemática aplicada, talvez seja salutar relembrar que muitos dos grandes matemáticos de todas as épocas mostraram pouco interesse nessa distinção e, com freqüência, produziram matemática de primeira classe em ambas as categorias.

Um exemplo proeminente dessa estirpe de matemáticos é Norbert Wiener (1894-1964).

Wiener nasceu em Columbia, Missouri, nos Estados Unidos e era filho de um imigrante que mais tarde se tornou professor de língua e literatura estava na Universidade de Harvard.

Foi uma criança prodígio que, aos três anos, sabia ler e escrever.

Bacharelou-se em matemática aos 14 anos e estudou zoologia durante uma ano. Doutorou-se com uma tese sobre Lógica Matemática, na Universidade de Harvard em 1913, quando tinha apenas 18 anos. Apesar dessa precocidade, seu processo de amadurecimento, até tornar-se renomado matemático, foi bastante lento.

Após algumas experiências profissionais não muito felizes, fixou-se em 1919 como professor do Departamento de Matemática do M.I.T. (Massachussets Institute of Technology) onde permaneceu até sua aposentadoria, tornando-se um dos seus mais famosos membros.

Em 1933 foi eleito para a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, mas após um curto período desligou-se por não concordar com alguns aspectos da ciência institucionalizada.

No decorrer de sua vida viajou por diversos países e recebeu inúmeros prêmios e distinções.

Sua figura bizarra e caricata foi motivo de muitas piadas e não passou desapercebida de seus biógrafos: “Em aparência e comportamento”, afirma Freudenthal em [1], “Norbert Wiener era uma figura barroca, baixo, rotundo e míope combinando isso e muitas qualidades em grau extremo. Sua conversa era uma curiosa mistura de pomposidade e galhofa. Era mau ouvinte. Sua auto exaltação era jocosa, convincente e nunca ofensiva. Falava muitas línguas mas não era fácil entende-lo em nenhuma delas. Era um famoso mau conferencista”.

Após doutorar-se, Wiener obteve de Harvard uma bolsa de estudos que lhe permitiu estudar lógica matemática em Cambridge sob a supervisão de Bertrand Russel e matemática em geral em Göttingen, na Alemanha, sob a supervisão de David Hilbert, um dos maiores matemáticos de sua época. O analista inglês G.H. Hardy foi outro matemático que exerceu influência marcante em sua formação.

Logo que se estabeleceu no M.I.T. seu interesse científico se direcionou para determinadas áreas da matemática aplicada onde realizou trabalho da maior importância. Durante a segunda guerra mundial desenvolveu uma teoria para a construção de mecanismos automáticos para apontar armas para alvos em movimento. Esses trabalhos introduziram métodos estatísticos na teoria do controle e da comunicação e levaram-no a formular o conceito de cibernética, definida por ele como “a ciência do controle e da comunicação no animal e na máquina”. O étimo do vocábulo inglês cybernetics é o grego Kubernetes cujo significado é timoneiro – o homem do leme.

Como se pode deduzir da definição acima, a cibernética se interessa pelo estudo de “mecanismos” tomando-se o termo num sentido suficientemente amplo para incluir máquinas e organismos animais. Devemos notar, no entanto, que, do ponto de vista do cibernético, é o aspecto comportamental e não o mecânico o relevante.

Terminada a guerra, além de dar continuidade a seus trabalhos, ligados a cibernética fez importantes contribuições à teoria da predição matemática, à mecânica quântica e à matemática aplicada à biologia.

Escreveu, ao longo de sua vida, diversos livros; alguns de cunho popular sobre cibernética e suas implicações filosóficas. Dentre estes, um foi traduzido para o português: “Cibernética e Sociedade – o uso humano de seres humanos”. O leitor deve ser advertido de que seu estilo expositório torna a leitura desses trabalhos bastante difícil. Ainda segundo Freudenthal, no local já citado, “o leitor para o qual ele (Wiener) aparentemente se dirige parece alternar ao acaso entre o leigo, o estudante de graduação, o matemático médio e o próprio Wiener”.

Como todo grande matemático, Wiener amava sua ciência e comparava o seu trabalho criador ao do artista. Em uma passagem de sua autobiografia [2]  expressou claramente esses sentimentos. “A matemática”, diz ele, “é um campo demasiadamente árduo e inóspito para agradar àqueles a quem não oferece grandes recompensas. Recompensas que são da mesma índole do que as do artista”. Acrescenta ainda que é no ato de criar que o matemático encontra a sua culminância e que “nenhuma quantidade de trabalho ou correção técnica pode substituir este momento de criação na vida de um matemático, poeta ou músico”.

Discorrendo sobre suas atividades de pesquisa faz interessantes considerações a respeito de como a memória intervém nesse processo. “Em meu trabalho matemático o grande esforço da memória deve-se, não tanto a retenção de uma vasta quantidade de fatos da literatura, mas, principalmente, à fixação dos aspectos simultâneos do problema no qual estive trabalhando e a conversão de minhas fugazes impressões em algo suficientemente permanente para ter lugar na memória”. Justifica essas afirmações dizendo que a identificação e síntese das dificuldades do enunciado resolve metade do problema. “Muito freqüentemente o que resta ser feito é a abstração daquele grupo de idéias que não é pertinente a solução do problema. Essa rejeição do irrelevante e purificação do relevante, posso faze-la melhor nos momentos em que sou atingido por um mínimo de impressões exteriores”.

É possível que essa atitude de concentração no trabalho e conseqüente fuga das impressões exteriores irrelevantes tenha contribuído para fazer de Wiener o estereótipo do homem distraído.

Conta-se que, certa vez, mudou sua residência para outra casa situada na mesma rua. No fim da tarde, ao retornar do trabalho, sentindo-se perdido, dirigiu-se a uma garotinha de rosto familiar que brincava na rua:

- Por favor, será que você saberia me dizer para qual destas casas mudou-se o professor Wiener?

- Não se preocupe, papai, eu o levo para casa.

 

Bibliografia

[1]  Dictionary of Scientific Biography, Charles Scriber & Sons. Ver artigo de Hans Freudenthal sobre Wiener.

[2]   Wiener, Norbert, Ex. Prodigy (1953) e I am a Mathematician (1956). MIT Press. Autobiografia de Wiener escrita em duas partes.

[3]    Artigo sobre Norbert Wiener na 15a. Edição da Enciclopédia Britânica.

[4]   Wiener, Norbert. Cibernética e Sociedade – o uso humano de seres humanos. Editora Cultrix. São Paulo, 1958.