André Toom
UFPE, Recife

      Introdução

Sou um matemático interessado em educação matemática. Fiz pesquisas e ensinei durante duas décadas na Rússia, uma década nos Estados Unidos e dois anos no Brasil. Neste artigo pretendo mostrar por que acredito que a educação matemática nas escolas públicas de ensino fundamental e médio, na Rússia, é melhor do que a americana e a brasileira.

Alguns anos atrás, o Ministério da Educação dos Estados Unidos, com a colaboração de órgãos congêneres de muitos outros países, promoveu o Third International Mathematics and Science Study (TIMSS) (1) (Terceiro Estudo Internacional sobre Matemática e Ciências).  O objetivo do estudo era comparar a qualidade média da educação em Matemática e Ciências, em diversos níveis, no maior número possível de países. O resultado mostrou que os melhores desempenhos foram os de estudantes dos países do leste asiático, seguidos dos de países europeus, Rússia entre eles. Estudantes dos Estados Unidos ficaram significativamente atrás desses grupos. De todos os países latino-americanos, apenas a Colômbia participou e foi o último na classificação.

Vou me concentrar em alguns desatinos da educação matemática americana e deixar que o leitor tire suas próprias conclusões sobre o Brasil.

O primeiro desatino é o preconceito dos educadores americanos contra a teoria. Por “teoria” não penso em nada demasiadamente avançado. Deixe-me dar um exemplo. Quando eu estava na escola, estudávamos Geometria como um sistema dedutivo e demonstrávamos teoremas. Embora nosso estudo fosse imperfeito, as idéias eram estimulantes.

Na educação americana, um tal estudo talvez nem seja considerado desejável. Como eu sei?

Dez anos atrás, o National Council of Teachers of Mathematics (NCTM) (Conselho Nacional de Professores de Matemática), uma organização muito poderosa, iniciou a publicação, em três volumes, dos chamados Standards (padrões) para a educação matemática. Concentraremos nossa atenção no primeiro volume [1] (uma espécie de guia curricular), porque os dois outros quase nunca são discutidos de tão pouca Matemática que contêm (2). O aspecto mais notável do Standards é a ausência da Matemática como um sistema. Estão lá vários fatos matemáticos bem conhecidos e problemas úteis, mas todos fora do contexto natural. Por exemplo, o teorema de Pitágoras é mencionado no Standards,  p. 113-114, junto com uma figura bem conhecida que pode ser usada para demonstrá-lo; no entanto, propõe-se o uso da figura apenas para “descobrir a relação através de exploração”. A possibilidade de demonstrar esse importante teorema não é nem mencionada e a própria idéia de demonstração é evitada no documento todo.

O prefácio do Standards declara (p. vi): “Os seguintes órgãos de Matemática e Ciências juntam-se ao National Council of Teachers of Mathematics para promover a visão da Matemática escolar descrita no Currículo e Padrões de Avaliação para a Matemática Escolar”[1], e segue-se uma respeitável lista que inclui a American Mathematical Society (AMS) (Sociedade Americana de Matemática). Como Standards parecia ter o endosso de tantos órgãos altamente doutos, não é de admirar que muitos professores declarassem estar ensinando de acordo com ele. Quando se perguntou a esses professores por que acreditavam nisso, a maioria respondeu: “Porque meus estudantes usam calculadoras, em vez de fazer contas com papel e lápis”. Isso era dito com orgulho porque Standards realmente está repleto de recomendações para que seja dada mais atenção ao uso da tecnologia, incluindo as calculadoras, e menos atenção às contas com papel e lápis. Standards transformou o uso das calculadoras numa questão de prestígio, e alguns professores começaram a sentir-se obsoletos e inadequados se não a usassem. Havia promessas bombásticas de que assim se liberaria o tempo das crianças para adquirir “habilidades de pensamento de alto nível”, mas, de fato, observou-se o oposto. Muitos professores da universidade queixam-se que seus alunos são incapazes de fazer simples contas.

Então aconteceu algo realmente dramático.

Em outubro de 1999, o Ministério da Educação dos Estados Unidos, comandado por Richard W. Riley, aprovou dez programas (3) de Matemática para as escolas fundamental e média, qualificando cinco deles como “exemplares” e os outros cinco como “promissores”. Essa decisão baseou-se nas conclusões de um Painel de Peritos (4), dos quais apenas um era atuante em pesquisa matemática. Desta vez, alguns matemáticos resolveram agir. No dia 18 de novembro de 1999, o jornal Washington Post publicou uma carta assinada por 200 matemáticos e outros cientistas solicitando a Riley que retirasse a aprovação dos programas feita pelo seu ministério. O NCTM imediatamente reagiu, expressando apoio integral à decisão de Riley de aprovar os programas (5), o que é compreensível, pois o Painel de Peritos baseou seus critérios parcialmente no Standards. Riley respondeu à carta dos matemáticos reafirmando a sua posição (6). Observamos, assim, um confronto aberto entre matemáticos, cientistas e pais, de um lado, e funcionários e líderes educacionais, do outro. Trata-se do quê?

O ponto de confronto mais evidente é se crianças devem aprender os algoritmos aritméticos usando papel e lápis ou se, em vez disso, devem usar calculadoras. A diferença de opinião pode ser ilustrada por duas citações, ambas incluídas na carta dos matemáticos. Uma é de um artigo escrito por um membro do Painel de Peritos, publicado em 9 de fevereiro de 1999 e disponível na web (7) : “Está na hora de reconhecer que, para muitos estudantes, potencial matemático real, de um lado, e facilidade com algoritmos computacionais, com muitos dígitos, usando papel e lápis, do outro, são mutuamente exclusivos. De  fato, está na hora de admitir que continuar ensinando essas habilidades aos nossos alunos não somente é desnecessário, mas é contraproducente e, decididamente, perigoso”.

A outra citação é de um relatório feito por uma comissão formada pela AMS com o propósito de apresentar suas opiniões ao NCTM:

“Gostaríamos de enfatizar que os algoritmos-padrão da aritmética são mais do que apenas ‘meios de obter a resposta’ – isto é, eles têm um significado teórico além do prático. Todos os algoritmos da aritmética são preparatórios para  a  álgebra,  pois  existe  (não  por  acidente, mas em  virtude  da construção do sistema decimal) uma forte analogia entre a aritmética dos números ordinários e a aritmética dos polinômios”. (8)

Na Rússia, por unanimidade, cálculos mentais e com papel e lápis foram sempre recomendados para todas as idades e considerados essenciais para a compreensão das operações.

Assim, os “reformadores” da educação matemática nos Estados Unidos já excluíram a maior parte da teoria e agora querem excluir algoritmos aritméticos do currículo. Para quê? Em prol da “resolução de problemas”. Agenda for Action, que, 20 anos atrás, expressava as opiniões do NCTM, sugeria que “resolução de problemas” fosse o foco da Matemática escolar ... [3] (p. 4). O Standards partilha integralmente essa opinião (p. 6) e inicia cada uma de suas três partes (elementar, média e colegial) com um capítulo chamado “Matemática como resolução de problemas”. Na minha opinião, resolver problemas é realmente muito importante, de modo que minha primeira reação em face dessas declarações foi positiva. Minhas suspeitas surgiram ao observar que, cada vez que esses educadores declaravam sua preocupação com resolução de problemas, tentavam excluir algo do currículo.

Neste artigo estou me concentrando em três tendências que me parecem ser as mais perigosas: excluir a teoria em prol do “faça você”, excluir os cálculos aritméticos com papel e lápis em prol de “habilidades de pensamento de alto nível” e excluir problemas verbais em prol dos “problemas do mundo real”. Já ilustramos as duas primeiras tendências, vamos à terceira.

Os livros de problemas russos estão repletos principalmente de problemas verbais. A característica desses problemas é o uso de palavras que não são termos matemáticos, como carros e trens; distância, tempo e velocidade; barcos e correntezas; aviões e vento; caixas, latas e bolas;  comprimento, largura e altura; perímetro, área e volume; canos, bombas e piscinas; massa, porcentagem e misturas; horas, minutos e hora do dia; ponteiros do relógio, anos e idade; dinheiro, preço, juros e descontos; etc. Na Rússia, a presença, abundância mesmo, de problemas verbais na educação matemática sempre foi normal, mas nos Estados Unidos é bem diferente. Embora educadores americanos louvem George Polya, pelo menos da boca para fora, muitas vezes ignoram suas opiniões. Polya escreveu:

“Por que problemas verbais? Espero chocar algumas pessoas ao afirmar que, por si só, a tarefa mais importante da instrução nas escolas médias é o ensino da montagem de equações para resolver problemas verbais. Existe um argumento forte a favor dessa opinião. Ao resolver problemas verbais, armando equações, o estudante traduz uma situação real em termos matemáticos; ele tem uma oportunidade de vivenciar que conceitos matemáticos podem estar relacionados com realidades, mas que tais relações precisam ser trabalhadas cuidadosamente” [4] (p. 59).

Quando li Polya na Rússia, pensei apenas que era um livro bom. Agora entendo quão polêmico ele realmente foi. Seus dois primeiros capítulos são dedicados a duas cinderelas da educação americana: geometria clássica e problemas verbais. Na América, problemas verbais (também conhecidos por problemas com histórias) são considerados difíceis e frustrantes. Há uma caricatura na série Far Side, chamada “Biblioteca do Inferno”, mostrando uma biblioteca cheia de livros de problemas com histórias. Mildred Johnson, uma professora experiente, inicia seu livro de problemas verbais (realmente muito fáceis, pelo padrão russo) do seguinte modo: “Não há área na álgebra que cause mais dificuldade aos alunos do que problemas verbais” [5].

Como problemas verbais são difíceis para alguns alunos e mesmo professores, seria natural dar maior atenção a eles nos cursos de licenciatura. Assim foi feito na Rússia, mas não nos Estados Unidos. Em vez disso, líderes educacionais tentaram criar a impressão de que havia algo errado em si com os problemas verbais. Por exemplo, Mathematics Teacher (a principal revista americana para professores de Matemática da escola média) publicou um artigo escrito por Zalman Usiskin, influente educador, em que ele escreve:  “A Álgebra tem tantas aplicações reais que os problemas verbais tradicionais e artificiais são desnecessários” [6] (p. 158-159). O prefácio do editor diz que as opiniões expressas no artigo são próximas àquelas do Standards. Por que Usiskin diz que problemas verbais tradicionais são artificiais? Ele cita o problema: “Uma pessoa tem 20 moedas no bolso, algumas de 5 centavos, outras de 10 centavos. O valor total é $1,75. Quantas são as moedas de 5 centavos? E de 10 centavos?”. Afirma então: “Como as moedas foram contadas, não deveria a pessoa que as contou saber quantas de 10 centavos havia?” (p. 159).

Na Rússia (e, creio, na maioria dos países), esse argumento estranho seria ignorado como uma piada de mau-gosto, mas na América ele foi levado a sério. Desatinos mencionados anteriormente podem privar as crianças de competência em Matemática, mas este último é bem mais perigoso. O argumento foi originalmente proposto por E. L. Thorndike, um bem conhecido behaviorista americano. Um capítulo do seu livro [7], intitulado “problemas irreais e inúteis”, qualifica com esse nome todos os problemas que não podem ser literalmente encontrados na vida real. Thorndike pensou que tais problemas produzem uma sensação de futilidade e propôs excluir todos do currículo. As idéias pedagógicas de Thorndike foram asperamente criticadas. Em particular, Lev Vygotsky, um famoso psicólogo russo, fez uma crítica abrangente a Thorndike nos seus trabalhos [8], [9]. O leitor interessado encontrará minhas opiniões mais detalhadas em [10], [11] e [12]

O que os “reformadores” da  educação matemática propõem positivamente? A parte do Standards, referente à escola média, contém uma lista dos tópicos que devem receber mais atenção e, encabeçando a lista, está o “uso de problemas do mundo real para motivar e aplicar a teoria” (p. 126). O que é um “problema do mundo real” e como distingui-lo de um “problema verbal tradicional, artificial”? Ninguém sabe ao certo. Para ilustrar quão confusa é a noção de “problemas do mundo real”, comparemos a recomendação de dar mais atenção a “problemas do mundo real”, Standards (p. 126), com a recomendação de dar menos atenção a “problemas verbais do tipo ‘moedas’, ‘dígitos’ e ‘trabalho’ ”, Standards, p.127. Como é impossível dar mais e dar menos atenção a uma mesma coisa, temos que concluir que problemas com moedas não são problemas do mundo real e, portanto, moedas não existem no mundo real. Essa conclusão parece ridícula, mas é um fato que, após a publicação do Standards, alguns educadores deram menos atenção a problemas com moedas. Riu-se dessa prática. Mas ninguém ofereceu alternativas.

Uma outra conseqüência bizarra da mesma recomendação: algumas pessoas imaginaram que “problemas do mundo real” eram aqueles que mencionavam nomes de marcas registradas. Alguns livros-texto incluíam problemas como este: “O biscoito Oreo é o mais vendido dos biscoitos em embalagens... O diâmetro de um biscoito Oreo é 1,75 polegada. Expresse o diâmetro do biscoito Oreo como fração na sua forma mais simples”. (9)

Enquanto isso, a guerra educacional continua. No dia 2 de fevereiro de 2000 realizou-se uma audiência sobre “O papel (do governo) federal na reforma da Matemática nas escolas fundamental e média” (10). Em particular, Jim Milgram, um matemático, mencionou “uma queda dramática do conhecimento de conteúdo que, nos anos recentes, temos observado nos estudantes que chegam à universidade”. Acho que Miligam está certo. Ao dar um curso na universidade, gostaria de ter certeza de que meus alunos foram expostos a uma boa matemática elementar tradicional desde as primeiras séries. Se você mora no topo de um edifício, você tem que se preocupar com o edifício todo.

NR - Parece oportuno relembrar que opiniões expressas em artigos como este são do autor. O objetivo da RPM ao publicar o artigo é enriquecer o debate a respeito dos temas apresentados.

 

Referências bibliográficas

[1]    [Standards]  Curriculum and evaluation Standards for school mathematics. National Council of Teachers of Mathematics, março 1989.

[2]    Principles and  Standards for School Mathematics. Versão eletrônica 1.0. Esboço de discussão.  http://Standards-e.nctm.org/

[3]    Agenda for Action. Recomendations for School Mathematics of the 1980s. NCTM. Reston. VA, 1980.

[4]    Polya, George. Mathematical Discovery. On understanding, learning and teaching problem solving. Edição combinada. John Wiley & Sons, 1981.

[5]    Johnson, Mildred. How to Solve Word Problems in Algebra. A Solved Problem Approach. McGraw-Hill, 1992.

[6]    Usiskin, Zalman. What Shoud Not Be in the Algebra and Geometry Curricula of Average College-Bound Students? Mathematics Teacher, v. 88, n. 2, fevereiro 1995, p. 156-164.

[7]    Thorndike, Edward L. The psychology of algebra. The Macmillan Company, New York, 1926

[8]    Vygotsky, L. S. The Problem of Development in Structural Psychology. Collected Works, Moscow, ‘Pedagogics’, v. 1, 1992 (em russo).

[9]    Vygotsky, L. S. Thought and Speech.. Collected Works, Moscow, ‘Pedagogics’, v. 2, 1992 (em russo).

[10] Toom, A. How I Teach Word Problems. Primus, v. VII, n. 3, setembro 1997, p. 264-270.

[11] Toom, A. Word Problems: Applications vs. Mental Manipulatives. For the Learning of Mathematics v. 19 (1), março 1999, p. 36-38.

[12] Toom, A. Between Childhood and Mathematics: Word Problems in Mathematical Education, Humanistic Mathematics Network Journal, n. 20, julho 2000, p. 25-32, 44.

 

__________
(1) Sobre TIMSS, veja: http://timss.bc.edu

(2) Uma nova versão do Standards do NCTM já está publicada como Principles and Standards for School Mathematics, NCTM, 2000, mas ela não anula Standards de 1989. Então a crítica continua atual.

(3) Os programas aprovados estão em: http://www.enc.org/ed/exemplary/

(4) A lista dos membros do Painel de Peritos encontra-se em:      http://www.ed.gov/offices/OERI/ORAD/KAD/expert\panel/mathmemb.html

(5) http://www.nctm.org/rileystatement.htm

(6) http://www.ed.gov/News/Letters/

(7) http://www.edweek.org/ew/1994/20lein.h13

(8) American Mathematical Society NCTM2000 Association Research Group Second Report. June  1997. Notices of the MAS, February 1998, p. 275.
Veja:  http://www.ams.org/notices/199802/comm-amsarg.pdf

(9) “Livros texto de Matemática temperados com marcas registradas levantam novo alarma”, de Constance L. Hays. New York Times, 21 de março, 1999.

(10)  http://www.house.gov/ed\workforce/hearings/166th/ecyf/fuzzymath2200/2200.htm