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Por que não ensinamos Cálculo na escola de 2° grau? Será que é um assunto muito difícil? Foi sempre assim no passado, ou já houve época em que o Cálculo era ensinado na escola secundária? E nos outros países, como é a situação? É ou não conveniente introduzir o Cálculo no ensino? Por quê? Como fazer isso? Estas as questões que serão tratadas aqui. O tema é importante e deve merecer a atenção de quem se ocupa do ensino de 2.° grau, direta ou indiretamente. Muita gente talvez não., saiba - afinal, já são passados trinta anos! -, mas no final dos anos 50 e começo dos anos 60, houve uma mudança significativa no ensino da Matemática no Brasil (em conseqüência do que então acontecia no exterior, diga-se de passagem). O nome do movimento era Matemática Moderna, pois, como propalavam seus defensores, era preciso modernizar esse ensino. A tônica dessa modernização foi uma ênfase excessiva no rigor e no formalismo das apresentações, à custa, inclusive, de retirar dos antigos programas tópicos importantes no ensino, como a Geometria e o C-alculo. - O Cálculo? - Sim, o Cálculo! Pois fazia parte do programa da 3.ª série do chamado curso científíco o ensino da derivada e aplicações a problemas de máximos e mínimos, além de outros tópicos como polinômio de Taylor. Isso desde 1943, quando foi instituída uma reforma do ensino secundário que ficou conhecida pelo nome do ministro da educação na época, o sr. Gustavo Capanema. Mas mesmo antes da Reforma Capanema, quando o que hoje chamamos de 5.ª à 8.ª série mais o 2.° grau era o curso ginasial de 5 anos, seguido por dois anos de pré-universitário, já o Cálculo fazia parte do programa no pré das escolas de engenharia. Em outros países o Cálculo é ensinado na escola secundária. E às vezes até em quantidade substancial, como acontece nos Estados Unidos. Lá o sistema de ensino, embora varie de Estado para Estado, e mesmo nos diferentes distritos educacionais de um mesmo Estado, é organizado de maneira a ter maior flexibilidade nos anos finais, que formam o chamado senior high-school, correspondendo aproximadamente ao que aqui chamamos de 2.° grau. Assim, um aluno no senior high pode preferir estudar mais Matemática, mais Ciências ou mais Humanidades. Na primeira hipótese, ele terá à sua disposição cursos substanciais de Álgebra (incluindo Trigonometria e Geometria Analítica), Geometria, e Cálculo. E, geralmente, o aluno que faz Cálculo no senior high, quando entra na universidade, apresenta um certificado de proficiência que o dispensa do curso de Cálculo do primeiro semestre e, às vezes, do ano todo, dependendo do quanto de Cálculo ele estudou no senior high. Resultado: ele entra na universidade e já vai cursando disciplinas mais avançadas de Cálculo, Análise, Física, etc.
Se até 1960 o Cálculo era ensinado na escola secundária, por que então ele não foi incluído nos programas do novo sistema que criou o 2.° grau? De um lado, os reformistas valorizavam mais outros tópicos, que melhor se prestavam àquelas apresentações que eles consideravam modernas. De outro lado, não haveria mesmo espaço para tanta coisa nos programas, já que o rigor e o formalismo exigiam o ensino da teoria dos conjuntos (sic) e vários detalhamentos axiomáticos que tomam tempo. Foi precisamente por isso que o ensino da Geometria ficou tão prejudicado. Afinal, uma apresentação rigorosa da Geometria é tarefa difícil e demorada, que exige cinco grupos diferentes de axiomas. E o que pode motivar o aluno para isso é uma familiaridade preliminar com a própria Geometria com os problemas que surgem na organização das demonstrações, familiaridade com os fatos geométricos em primeiro lugar. Em outras palavras, para bem entender e apreciar uma apresentação rigorosa da Geometria, é preciso primeiro fazer um bom curso de Geometria, um curso de resultados. (Há um livro de Geometria, de Moise e Downs, escrito no espírito da Matemática Moderna, onde o Teorema de Pitágoras só vai aparecer na página 345, pois o autor tem de concentrar seu esforço na axiomática e no rigor! Como pode uma coisa assim?) Com essa excessiva preocupação com o rigor, o ensino do Cálculo exigiria agora um estudo detalhado dos números reais, coisa que tomaria no mínimo todo um semestre, por isto mesmo totalmente inviável...
O porquê do Cálculo
Os
reformistas do ensino falavam em modernizar, criticavam o ensino por se
limitar à Matemática que terminava no ano de 1700. Ora, o irônico é que
descartaram o Cálculo, cujas idéias surgiram antes desse ano de 1700, e
que são o que de mais moderno começava a surgir na Matemática. E desde
então o Cálculo vem desempenhando um papel de grande relevância em todo o
desenvolvimento científico-tecnológico. Portanto, descartá-lo no ensino
é grave, porque deixa de lado uma componente significativa e
certamente a mais relevante da Matemática para a formação do aluno num
contexto de ensino moderno e atual. Incorreram os reformistas naquele erro
de recusar a pedra angular, aquela que seria a mais importante na
construção do edifício...
O
Cálculo é moderno porque traz ideias novas, diferentes do que o aluno de
2.° grau encontra nas outras coisas que aprende em Aritmética, Álgebra,
Geometria, Trigonometria e Geometria Analítica. Não apenas novas, mas
idéias que têm grande relevância numa variedade de aplicações científicas
no mundo moderno. Ora, o objetivo principal do ensino não é outro
senão preparar ò jovem para se integrar mais adequadamente à sociedade.
Não se visa, com b ensino da Matemática no 2.° grau, formar especialistas
no assunto. Ensina-se Matemática porque esta é uma disciplina que faz
parte significativa da experiência humana ao longo dos séculos, porque ela
continua sendo hoje, com intensidade ainda maior do que no passado, um
instrumento eficaz e indispensável para os outros ramos do
conhecimento.
O que ensinar
Mas
- dirá alguém -, será mesmo possível incluir o ensino do Cálculo
em nossos programas já tão alentados? Queremos mostrar que sim,
que é uma questão de arrumar os programas adequadamente. Ademais,
o Cálculo, desde que apresentado convenientemente, ao contrário
de ser difícil, é muito gratificante pelas idéias novas que traz e pelo poder e alcance de
seus métodos. É perfeitamente
possível, em uma única aula, introduzir a noção de reta tangente a uma
curva e a de derivada de uma função, como já tivemos oportunidade de
fazer em palestras para professores de 2.° grau. Para maiores
esclarecimentos remetemos o leitor ao nosso livro de Cálculo [1],
especialmente a parte que vai da seção 3.4 até o final do capítulo 3.
Ensina-se
Matemática porque
esta é
uma disciplina que faz parte significativa
da experiência humana ao
longo dos séculos, porque ela continua sendo hoje, com intensidade
ainda
maior do que no passado,
um instrumento eficaz e indispensável para os outros ramos do
conhecimento.
É
claro que a introdução da derivada deve ser acompanhada de várias de suas
aplicações. Uma delas, tão útil e necessária nos cursos de Física, diz
respeito k Cinemática. Não há dificuldades no estudo do movimento
uniforme, ou seja, com velocidade constante. Mas ao passar adiante,
desassistido da noção de derivada, o professor de Física faz uma ginástica
complicada para apresentar o movimento uniformemente, variado. E as coisas
seriam bem mais simples para ele e muito mais compreensíveis para o aluno
se esse ensino fosse feito à luz da noção de derivada, interpretada como
veiocidade instantânea.
Uma
vez aprendido que a derivada é o declive da reta tangente, o aluno
entenderá facilmente, com apelo à intuição geométrica, que uma
função é constante se sua derivada é zero. Daí segue que funções
que tenham a mesma derivada diferem por
uma constante, ou seja, uma é igual à outra mais uma constante. Isso
permite obter, facilmente a equacão da velocidade a partir do dado de que a
aceleração é constante; e também a
equação horária do movimento, fazendo raciocínio análogo sobre a equação
da velocidade.
A
derivada tem inúmeras outras utilidades para o professor de Física, na
introdução de conceitos como pressão, densidade de massa,
densidade de carga elétríca, etc. E claro que isto suscita o problema
de bem situar o ensino da derivada, que deve preceder ou ser feito
simultaneamente ao da Cinemática na Física.
Uma
aplicação importante da derivada na própria Matemática, e de muita
atualidade nesta época de. cálculos numéricos com auxílio de computadores
eletrônicos, já foi apresentada nesta Revista; trata-se do método de
Newton no cálculo numérico, em particular do cálculo de raízes n-ésimas
pelo método das aproximações sucessivas; (Veja o artigo de Zanoni Carvalho
da Silva, RPM 4, pp. 25 a 27.) Há interessantes aplicações da derivada a
problemas de máximos e mínimos, da função exponencial a problemas de
crescimento de populações, decaimento radioativo e outros mais (veja [1],
seçs. 5.3 e 5.6), que cabem muito bem num curso introdutório e que têm
alto poder de estímulo e gratificação, para o professor e para o aluno.
Outras aplicações que certamente estimularão o interesse e a curiosidade
dos alunos requerem uma introdução à integral. Mas isto também pode ser
feito de maneira intuitiva, sempre com ênfase nas idéias, nas técnicas e
nas aplicações.
A idéia de que os programas de Matemática são extensos e não comportariam
a inclusão do
Cálculo é um equívoco.
Os atuais programas estão, isto
sim, mal estruturados.
Como introduzir Cálculo
no ensino
A idéia de que os programas
de Matemática são extensos e não comportariam a inclusão do Cálculo é um
equívoco. Os atuais programas estão, isto sim, mal estruturados. A reforma
dos anos 60 introduziu nos programas um pesado e excessivo formalismo. Não
obstante as modificações que têm
sido feitas nos últimos dez ou quinze anos, num esforço de melhoria do
ensino, muito desse formalismo persiste em muitos livros e é responsável
pelo inchaço desnecessário dos programas.
O exemplo mais evidente disso está no ensino das funções. Gasta-se muito
tempo para introduzir uma extensa nomenclatura - contradominio,
função inversa, função composta, função injetiva, sobrejetiva
- num esforço de poucos resultados práticos. E antipedagógico introduzir
conceitos que não estejam sendo solicitados no desenvolvimento da
disciplina. E se o professor seguir esta salutar orientação, ele não
precisará, por bom tempo, de nenhum dos conceitos mencionados. Para que o
conceito de
contradomínio, por exemplo? A
idéia
de função inversa no Cálculo só vai aparecer significativamente
quando desejamos calcular a derivada de uma função que possa ser
interpretada como a inversa de outra cuja derivada já conhecemos. É este o
caso da função arco-seno, inversa da função seno. A função composta só vai
aparecer quando necessitarmos da regra de derivação em cadeia. Ora, muito
antes de se lidar com essas coisas, há outras mais interessantes a
apresentar aos alunos, tópicos substantivos, como o problema de definir e
determinar a reta tangente. E para fazer isso não é preciso falar em
contradomínio ou função injetiva; sequer necessitamos nos preocupar com o
conceito de domínio. (Veja também o livro do Prof. Nilson [4], onde
a apresentação inicial do conceito de função é rápida e direta.)
Infelizmente, o ensino das funções vem sendo feito com a introdução de
muitas noções novas, como já dissemos, apresentação essa que é entremeada de
exercícios pouco estimulantes, como determinar domínio e contradomínio de
funções dadas, achar a inversa, compor funções, verificar que certas funções
são injetivas, outras não, enfim, uma série de coisas que por si sós não
estimulam a curiosidade do aluno. E para agravar ainda mais essa situação,
as apresentações de funções geralmente são feitas com uma insistência no
conceito mais geral de função, como caso particular de uma relação. Isto é
um desatino! Já o seria se a insistência fosse apenas na situação mais
particular de
lei de correspondência que
leva elementos de um conjunto - o domínio - em elementos de outro
conjunto - o contradomínio. Não há por que preocupar-se com definição
tão geral quando só serão usados exemplos simples de funções numéricas, como
os polinômios, as funções racionais
mais elementares e alguma raiz quadrada. (Veja-se, a este respeito, a seção
3.1 do nosso livro [1], uma aula apenas para generalidades sobre funções.)
Não é de estranhar, depois de todo esse desacerto, que o aluno não goste de
Matemática!...
Descartar o Cálculo no ensino é grave, porque deixa de lado uma componente
significativa e certamente a mais relevante da Matemática para a formação
do aluno num contexto de ensino moderno e atual.
Os
matemáticos só conseguiram chegar ao conceito de função, tal como o
entendemos hoje, depois de um longo período de evolução do Cálculo, cerca
de século e meio. As funções iam aparecendo na formulação e tratamento
dos problemas; primeiro funções simples, como os polinômios ou as que
deles se obtêm por operações algébricas, depois a função logarítmica, a
exponencial, as funções trigonométricas, etc. Aos poucos funções mais
complicadas, dadas por séries ou integrais, também apareceram
naturalmente, na tentativa de resolver equações diferenciais surgidas na
formulação de problemas de Mecânica, condução do calor, em Mecânica
Celeste, etc. Foi ao longo dessa lenta maturação que se foi reconhecendo a
importância do conceito de função. E importante justamente porque com ele
era possível formular e resolver problemas, o que exigia derivar e
integrar funções, desenvolvê-las em séries infinitas, etc. (A respeito
dessa evolução veja [2].)
Portanto,
para podermos mostrar ao aluno a importância do conceito de função, temos
de ensinar-lhe os conceitos de derivada e integral e para que servem
esses conceitos. A medida que vamos avançando com a apresentação de
idéias,
com o desenvolvimento de métodos relevantes no
tratamento de problemas significativos, aí sim, vão surgindo, a cada
passo, gradativamente, a necessidade de definições novas, e dessa maneira
o ensino pode tornar-se interessante, o aluno se sentirá estimulado
porque ente/ide a razão de ser do que está aprendendo.
Seria muito mais proveitoso que todo o tempo que hoje se gasta, no 2°
grau, ensinando formalismo e longa terminologia sobre funções, que todo
esse tempo fosse utilizado com o ensino das noções básicas do Cálculo e
suas aplicações. Então, ao longo desse desenvolvimento, o ensino das
funções seria feito no contexto apropriado, de maneira espontânea,
progressiva e proveitosa.
Como se vê, o problema não é encontrar mais espaço nos atuais programas;
trata-se, isto sim, de bem utilizar
o espaço já disponível, com uma melhor distribuição e apresentação
dos diferentes tópicos.
A estrutura
dos programas
O
que acabamos de escrever leva-nos naturalmente a considerar a estrutura
dos atuais programas de Matemática. Hoje em dia vários tópicos desses
programas são apresentados isoladamente uns dos outros, quando deveria
haver maior articulação entre eles, para dar aquela tão desejada
organicidade ao ensino. Esse fenômeno é conseqüência de sucessivas
reformas; elas foram introduzindo mudanças, mas deixando certas coisas
intocadas, as quais, depois de muito tempo, passaram a ser verdadeiros
esqueletos no armário. Exemplo disto é o ensino de razões e
proporções, de que tratamos em artigos publicados nas RPMs 8 e 9. Esse
ensino não se modernizou e guarda resquícios de coisas muito antigas e de
há muito ultrapassadas. (Veja, em particular, os comentários que fazemos
nas pp. 1 e 2 da RPM 8.) 0 certo seria aproveitar o ensino de razões e
proporções para dar início ao estudo de funções, enfatizando a interdependência das grandezas envolvidas e os gráficos. (O Prof. Nilson
mostra como fazer isso em [4], p. 13 e seguintes.) Mais tarde, no estudo
das equações lineares e da equação do 2.° grau, há oportunidade natural de
voltar a enfatizar o aspecto de dependência funcional e utilizar
gráficos. Por que não introduzir a noção de reta tangente e
derivada no estudo do trinômio do 2.° grau, de seus extremos de máximo ou
mínimo? Assim, a noção de função vai aparecendo aos poucos, em vários
lugares onde é efetivamente utilizada, tecendo uma costura de harmonia entre
as diferentes partes dos programas.
Outro
tópico cujo tratamento já está defasado no tempo é o logaritmo. Se até há algumas décadas o
logaritmo era um poderoso instrumento do cálculo numérico, isto já não é
mais verdade há pelo menos vinte anos. Hoje em dia, com os computadores
e as minicalculadoras, não há por que preocupar-se com tábuas de
logaritmos e seu uso. Gastava-se muito tempo com isso, treinando os
alunos na resolução de triângulos e em outros cálculos envolvendo
tabelas de logaritmos de funções trigonométricas. Eis aí um espaço a
ser preenchido com outras coisas. Não que descartemos o logaritmo. Ele
continua sendo muito importante, não mais para o cálculo numérico, mas como
função logarítmica. Sua inversa, a função exponencial, é
talvez a função mais importante de toda a Matemática, com muitas aplicações
interessantes, como já mencionamos. 0 natural, como se vê, é levar o
logaritmo para o contexto do Cálculo. Definido como área sob uma hipérbole
([1], sec. 4.10; veja também [3] e p. 27 desta RPM), ele é um interessante
prelúdio ao Cálculo Integral.
Como
se vê, não é que falte espaço para o Cálculo nos programas. É preciso, isto
sim, reestruturar esses programas, eliminar o que neles há de arcaico,
introduzir novos tópicos e modernizar as apresentações, tudo isto feito de
maneira que as diferentes partes fiquem bem articuladas entre.si e o
conjunto apresente organicidade.
Referências Bibliográficas:
[1] Ávila, Geraldo.
Cálculo 1. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos Editora, 4* edição, 1981.
[2] Ávila, Geraldo. Evolução dos Conceitos de Função e de Integral.
Revista Matemática Universitária, n.°1. Sociedade Brasileira de Matemática, 1985.
[3] Lima, Elon L.
Logaritmos. Coleção Fundamentos da Matemática Elementar. Sociedade
Brasileira de Matemática, 1985.
[4]
[5] Trotta, Imenes, Jaknbovic. Matemática Aplicada. São Paulo, Editora Moderna, 1980.
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